segunda-feira, 13 de março de 2017

O Horror no Museu

Foi apenas curiosidade o que levou Stephen Jones ao Museu Rogers pela primeira vez. Alguém lhe falara a respeito do estranho lugar subterrâneo na Southwark Street, do outro lado do rio, onde criaturas de cera muito mais horrendas que as piores efígies do Madame Tussaud estavam expostas; e num dia de abril ele resolveu entrar para conferir que tipo de desapontamento iria ter. Curiosamente, não se desapontou. Afinal, alguma coisa diferente e notável estava ali. Decerto, os velhos lugares-comuns sangüinários não poderiam faltar: Landru, Doutor Crippen, Madame Demers, Rizzio, Lady Jane Grey, infindáveis vítimas da guerra e da revolução, e monstros como Gilles de Rais e o Marquês de Sade; mas também outras coisas que aceleraram sua respiração e o fizeram permanecer até ouvir o toque de fechar. O homem que tinha montado aquela coleção não poderia ser um charlatão ordinário. Havia imaginação, e até um toque de genialidade doentia, em algumas das peças.
Mais tarde ele se informou sobre George Rogers. O homem tinha sido da equipe do Tussaud, mas algum problema ocorrera que resultara em sua demissão. Ouviram-se rumores acerca de sua sanidade mental e notícias sobre suas loucas formas de adoração secreta; embora, finalmente, o sucesso de seu próprio museu no porão acabasse embotando o gume de algumas críticas, ao mesmo tempo em que aguçava a ponta insidiosa de outras. Teratologia e iconografia do pesadelo eram seus passatempos; e ele teve mesmo a prudência de alojar discretamente algumas de suas piores efígies numa alcova especial, destinada somente aos adultos. Foi essa alcova que tanto fascinou Jones. Havia coisas híbridas e disformes que só a fantasia seria capaz de gerar, moldadas com arte diabólica e coloridas de um modo horrivelmente realístico.
Algumas eram figuras de mitos bem conhecidos: górgonas, quimeras, dragões, ciclopes e todos os seus arrepiantes congêneres. Outras tinham sido tiradas de mais obscuros e só furtivamente murmurados ciclos de lendas subtérreas: o negro e disforme Tsathoggua, o multitentacular Cthulhu, o trombudo Chaugnar Faugn, e outras indizíveis blasfêmias extraídas de livros proibidos como o Necronomicon, o Livro de Eibon ou o Unaussprechlichen Kulten, de Von Junzt. Mas as piores eram criações originais de Rogers, representando formas que nenhuma narrativa da antigüidade teria alguma vez ousado descrever. Muitas eram repulsivas paródias das formas da vida orgânica que conhecemos, enquanto outras pareciam ter sido sacadas de sonhos febris de outros planetas e galáxias. As mais selvagens pintadas por Clark Ashton Smith podem sugerir algumas; mas nada se compararia ao efeito de pungente, repelente terror gerado pelas suas grandes dimensões e delirante acabamento artesanal e pelas condições de luz diabolicamente perspicazes sob as quais eram exibidas.
Stephen Jones, como um descompromissado connoisseur do bizarro na arte, procurara Rogers pessoalmente no sombrio escritório e estúdio que ficava atrás do salão de teto abobadado do museu – uma cripta de aspecto demoníaco, obscuramente iluminada por janelas de correr poeirentas, dispostas horizontalmente no nível dos paralelepípedos de um pátio escondido. Nesse lugar é que se fazia a manutenção das imagens, e ali, também, algumas tinham sido produzidas.
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Braços de cera, pernas, cabeças e torsos jaziam em grotesca desordem sobre vários bancos, ao passo que nas prateleiras das estantes se viam perucas, dentes e olhos mortiços de vidro espalhados indiscriminadamente. Vestimentas de todos os tipos pendiam de ganchos; e numa dada alcova havia grandes pilhas de cera cor-de-carne e prateleiras repletas de latas de tinta e pincéis de todos os formatos. No centro do cômodo estava a grande forja para preparar a cera a ser moldada, sua larga boca ocupada por um vasto container de ferro com alças, ao qual se ligava um tubo que permitiria despejar a cera derretida com um simples toque de dedo.
Outras coisas, na cripta penumbrosa, seriam mais difíceis de descrever: partes isoladas de entidades problemáticas cujas formas agrupadas eram fantasmas de delírio. Numa das extremidades via-se uma porta de madeira maciça, trancada por um cadeado de tamanho incomum, sobre a qual se achava pintado um símbolo bastante peculiar. Jones, que já tivera acesso ao temível Necronomicon, estremeceu involuntariamente ao reconhecer aquele símbolo. Este expositor, refletiu, deve ser alguém de um saber desconcertantemente vasto acerca dos assuntos dúbios e negros.
Também a palestra de Rogers não o desapontou. Era um homem alto, esguio e assaz desalinhado, os grandes olhos negros brilhando em combustão em meio a uma face pálida e mal barbeada. Não se incomodou com o aparecimento de Jones e antes pareceu saudar a ocasião de poder se abrir com uma pessoa interessada. Sua voz era de uma profundidade e de uma ressonância singulares, mal dissimulando uma ponta de intensidade represa, que bordejava mesmo com o fervor. Jones não se espantou de que muitos o tivessem julgado louco.
A cada nova visita (e as visitas se tornaram habituais com o passar das semanas), Jones encontraria Rogers mais comunicativo, mais inclinado às confidências. No princípio, tinha havido rumores de crenças e práticas estranhas, da parte do expositor, e mais tarde esses rumores se expandiram em histórias, não obstante umas poucas e estranhas fotografias corroborantes, cuja extravagância roçaria pelo cômico. Foi em junho, numa noite em que Jones trouxera uma garrafa de bom uísque e pôde conversar mais livremente com seu anfitrião, que o discurso realmente insano despontou. Antes disso, haviam surgido histórias delirantes demais – relatos de viagens ao Tibete, ao interior da África, ao deserto da Arábia, ao vale do Amazonas, ao Alasca e a certas ilhas pouco conhecidas do Pacífico Sul, além de declarações acerca de ter lido livros monstruosos como os fragmentos Pnacóticos e os cantos Dhol atribuídos ao maligno e inumano Leng -, mas nada disso fora tão inequivocamente insano quanto o que veio à tona, sob o influxo do uísque, naquele anoitecer de junho.
Mais abertamente, Rogers passou a se gabar de ter encontrado certas coisas na natureza que ninguém encontrara antes e de ter trazido à luz evidências de tais descobertas. De acordo com sua arenga, tinha ido mais longe do que qualquer outro na interpretação desses livros obscuros e primevos que estudara, e fora orientado por eles para certos lugares remotos onde insólitos remanescentes se ocultavam – remanescentes de éons de ciclos de vidas mais antigos que a humanidade e em alguns casos conectados com outras dimensões e outros mundos, mundos e dimensões com os quais a comunicação seria freqüente em dias pré-humanos. Jones se maravilhava com uma fantasia tão capaz de conjurar semelhantes noções e se perguntava qual seria a real história mental de Rogers. Teria sido o seu trabalho em meio ao grotesco mórbido do Madame Tussaud o ponto de partida para suas fugas imaginativas ou se tratava de uma tendência inata, da qual a escolha de sua ocupação fora apenas uma das manifestações? De qualquer modo, o trabalho do homem estava como que ligado a essas noções. Mesmo agora não havia que se equivocar com o curso de suas mais negras sugestões acerca das monstruosidades de pesadelo ocultas atrás da porta onde se lia “Para adultos somente”. Infenso ao ridículo, ele tentava sugerir que nem todas essas anormalidades demoníacas eram artificiais.
Foi mesmo o ceticismo e o espanto de Jones diante dessas declarações irrespondíveis que acabaram quebrando a crescente cordialidade. Rogers – estava claro – se levava muito a sério, pois agora se tornava moroso e ressentido, continuando a tolerar Jones somente ao preço de um incontido impulso de romper o muro de sua incredulidade urbana e complacente. Contos e sugestões delirantes de ritos e sacrifícios prestados a inomináveis deuses antigos continuavam; e aqui e ali Rogers mostraria ao hóspede uma das ultrajantes blasfêmias na alcova reservada e apontaria detalhes difíceis de conciliar mesmo com a mais refinada artesania humana. Jones prosseguiu, fascinado, com suas visitas, embora soubesse que tinha desmerecido os interesses de seu anfitrião. Às vezes, tentaria animar Rogers com um fingido assentimento a alguma sugestão ou asserção maluca, mas o magro expositor raramente se deixaria enganar por essas táticas.
A tensão atingiu o ápice mais tarde, em setembro. Jones entrou casualmente no museu, num certo entardecer, e perambulava pelos corredores sombrios, cujo horror lhe era agora familiar, quando ouviu um som bastante sinistro, proveniente do estúdio de Rogers. Outros o ouviram também e, nervosamente, saíram em disparada, enquanto os ecos reverberavam através do grande porão de teto arqueado. Os três assistentes trocaram olhares significativos; um deles, um sujeito negro e taciturno, com ar de estrangeiro, que sempre servira Rogers como reparador e desenhista assistente, sorriu de um modo que pareceu intrigar seus colegas e que tocou profundamente alguma faceta da sensibilidade de Jones. Parecia o ganido ou o uivo de um cão e era um som que só poderia ser produzido sob condições do mais extremo terror e agonia combinados. Seu frenesi agudo, angustiado, era impressionante de ouvir e, em toda a sua grotesca anormalidade, continha algo duplamente aterrorizante. Jones se lembrou de que não eram permitidos cachorros no museu.
Estava prestes a ir até a porta que conduzia ao estúdio, quando o atendente negro o deteve com uma palavra e um gesto. O Sr. Rogers – o homem disse, numa voz suave e algo acentuada que não escondia qualquer coisa de apologético e sardônico – tinha saído, e havia ordens expressas para não deixar que ninguém entrasse no estúdio durante sua ausência. Quanto àquele uivo, proviera certamente de alguma coisa lá fora, do pátio aos fundos do museu. A vizinhança estava cheia de vira-latas, cujas brigas costumavam ser chocantemente barulhentas. Não havia cães em parte alguma do museu. Mas, se o Sr. Jones quisesse ver o Sr. Rogers, poderia encontrá-lo antes da hora de fechar.
Depois disso, Jones galgou os velhos degraus de pedra até a rua e examinou com curiosidade os esquálidos arredores. Os edifícios magros, decrépitos – que uma vez foram residências, mas que agora eram na maioria lojas e armazéns – eram de fato muito antigos. Alguns deles eram de um tipo que parecia remontar à época dos Tudors, e um fedor algo miasmático pairava sutilmente por toda a região. Ao lado da casa sombria cujo porão servia de museu havia uma passagem em arco, não muito alta, cortada por um caminho de pedras escuras, e foi por ela que Jones enveredou na vaga expectativa de encontrar o pátio dos fundos e ajeitar em sua mente, de um modo mais confortável, o caso do cachorro. O pátio, obscurecido na fraca luz do entardecer, estava cercado ao fundo por muros mais feios e intangivelmente ameaçadores do que as fachadas decadentes do casario vetusto e maligno. Não se via nenhum cachorro. Jones se perguntou como o resultado de tamanho frenesi poderia ter se desvanecido tão depressa e tão completamente.
Apesar da declaração do assistente de que nenhum cachorro tinha estado no museu, Jones examinou com nervosismo as três pequenas janelas do estúdio subterrâneo, estreitos e horizontais retângulos colados ao piso onde a erva crescia, seus vidros ostensivos a mirar repulsivamente e sem curiosidade como os olhos de um peixe morto. À sua esquerda um lance carcomido de degraus conduzia a uma obscura porta de pesadas dobradiças. Um impulso lhe veio de se abaixar sobre os paralelepípedos úmidos e partidos e espiar lá dentro, na possibilidade de que os espessos cortinados verdes, movidos por longos cordões que desciam até um nível alcançável, não poderiam ser afastados. As superfícies externas estavam grossas de poeira, mas quando as esfregou com o lenço percebeu que não havia nenhuma cortina obstruindo a visão.
Tão penumbroso era o interior do porão que pouca coisa se podia ver, mas a grotesca parafernália se deixava lobrigar espectralmente aqui e ali, enquanto Jones observava janela por janela. Parecia evidente, a princípio, que ninguém estava dentro; no entanto, quando ele espiou através da janela da extrema direita – aquela mais próxima do caminho de entrada -, avistou um brilho ao fundo do compartimento que o fez estacar surpreendido. Não havia razão para que nenhuma luz estivesse ali. Tratava-se de uma parte interna do cômodo, e ele não podia lembrar-se de haver nenhuma lâmpada elétrica ou a gás perto daquele ponto. Uma outra olhadela definiu o brilho como sendo um largo retângulo vertical, e um pensamento lhe ocorreu. Era naquela direção que ele tinha sempre reparado na grande porta de madeira com o imenso cadeado – a porta que nunca era aberta e sobre a qual se estampava cruamente aquele pavoroso símbolo críptico proveniente dos documentos fragmentários de uma magia ancestral e proibida. Devia estar aberta agora, e havia uma luz lá dentro. Toda a sua especulação anterior sobre o lugar aonde aquela porta levaria e sobre o que haveria por trás foi então renovada, com uma intensidade triplamente inquietadora.
Jones perambulou a esmo pela opressiva localidade até próximo das seis horas, quando voltou ao museu para procurar Rogers. Dificilmente poderia dizer por que ansiava tanto em ver o homem assim de imediato; contudo devem ter influído nessa disposição algumas suspeitas subconscientes acerca daquele uivo canino da tarde, terrivelmente difícil de situar, e acerca do brilho naquela porta perturbadora do interior, que usualmente permanecia fechada com o maciço cadeado. Os assistentes estavam de saída quando ele chegou, e achou que Orabona, o negro assistente de aparência estrangeira, o olhava com uma curiosidade sub-reptícia e contida. Não gostava daquele olhar, mesmo tendo visto o sujeito dirigi-lo ao seu patrão noutras ocasiões.
O salão de teto abaulado parecia aterrorizante em seu abandono, mas ele o atravessou velozmente e bateu na porta do escritório e estúdio. A resposta demorou a vir, embora se ouvissem passos lá dentro. Finalmente, em resposta a uma segunda batida, a fechadura estalou, e o antigo portal de seis painéis rangeu relutantemente antes de pôr à mostra o vulto devastado e de olhar febricitante de George Rogers. Logo de saída ficou claro que o expositor se achava num estado de espírito incomum. Havia uma curiosa mistura de relutância e de real avidez em sua saudação, e seu modo de falar derivava para extravagâncias do tipo mais incrível e horripilante.
Antigos deuses sobreviventes – inomináveis sacrifícios – a outra natureza além daquela, artificial, dos horrores da alcova – toda a lengalenga usual, mas pronunciada num tom de confiança algo crescente. Obviamente, refletiu Jones, a loucura do pobre o estava dominando mais e mais. Vez por outra, Rogers lançaria olhadelas furtivas em direção à porta trancada no final do cômodo ou em direção a um pedaço de áspera aniagem que jazia no chão, não muito distante dele, sob o qual algum objeto pequeno parecia estar colocado. Jones ficou mais nervoso à medida que os momentos passavam e começou a se sentir tão hesitante em mencionar os estranhos eventos da tarde quanto há pouco tinha estado ansioso por fazê-lo.
O tom sepulcralmente grave da voz de Rogers quase se partia sob a excitação de seu delírio febril.
– Você se lembra – gritou – do que eu lhe contei acerca daquela cidade em ruínas da Indochina onde os tcho-tchos viviam? Teve de admitir que estive lá, quando viu as fotografias, mesmo se achasse que eu fiz às escuras aquele nadador oblongo de cera. Se você o tivesse visto contorcendo-se nos poços subterrâneos como eu vi…
“Bem, este é maior ainda. Nunca lhe falei sobre este, porque desejava trabalhar as últimas partes antes de fazer qualquer anúncio. Quando você vir os instantâneos, saberá que a geografia não poderia ter sido falsificada; e eu creio que tenho outro meio de prová-lo. Não se trata de nenhuma mistura de cera que fiz. Você nunca o viu, porque os experimentos não me permitiriam mantê-lo em exibição.”
O exibidor olhou de um modo estranho para a porta trancada.
–          Tudo provém daquele longo ritual no oitavo fragmento pnacótico. Quando me dei conta, vi que poderia ter apenas um significado. Havia coisas no norte antes que a terra de Lomar – antes que a humanidade existisse; e esta era uma delas. Vasculhamos tudo até o Alasca, partindo de Fort Morton até Nootak, mas a coisa estava lá, como sabíamos que estaria. Grandes ruínas ciclópicas, cobrindo acres inteiros. Havia sobrado menos do que esperáramos, mas após três milhões de anos o que se poderia desejar? E não estavam as lendas esquimós todas na direção certa? Não podíamos forçar um deles a ir conosco, e tivemos de esquiar de volta até Nome em busca de americanos. Orabona não tinha utilidade naquele clima, tornou-se taciturno e odioso.
“Mais tarde lhe contarei do modo como a encontramos. Quando removemos o gelo dos pilonos da ruína central, a escadaria era exatamente como pensamos que seria. Viam-se ainda alguns entalhes, e não houve problemas em impedir que os yankees nos seguissem ao entrarmos. Orabona tremia como uma folha – você nunca suporia, vendo o modos insolentes que ele exibe por aqui. Ele conhecia o bastante sobre as velhas lendas, para estar devidamente amedrontado. A luz externa tinha acabado, mas nossos archotes mostravam o bastante. Vimos os ossos de outros que tinham existido antes de nós éons atrás, quando o clima era quente. Alguns desses ossos eram de coisas que você não poderia sequer imaginar. No terceiro nível abaixo, encontramos o trono de marfim, do qual os fragmentos tanto falavam – e posso lhe dizer que não estava vazio.
“A coisa no trono não se movia, e então percebemos que Ele precisava ser alimentado por algum sacrifício. Mas não pretendíamos acordá-Lo. Melhor levá-Lo para Londres primeiro. Orabona e eu nos arrojamos à superfície da grande caixa, mas quando O embalamos, vimos que não poderíamos subir com Ele os três lances de degraus. Esses degraus não foram construídos para seres humanos, suas dimensões nos dificultavam. De qualquer modo, era pesado em excesso. Tivemos de chamar os americanos para O tirarmos de lá. Não estavam nada animados a entrar no lugar, mas certamente a coisa pior já estava dentro da caixa. Dissemos a eles que se tratava de uma peça de marfim esculpido, material arqueológico; e, ao verem o trono entalhado, provavelmente acreditaram em nós. É um espanto que não tenham suspeitado de um tesouro oculto e que não tenham exigido uma parte. Devem ter contado estranhas histórias acerca de Nome, mais tarde; embora eu duvide de que tenham retornado às ruínas, mesmo pelo trono de marfim.”
Rogers fez uma pausa, procurou em sua escrivaninha e tirou um envelope com fotografias de tamanho grande. Extraindo uma e colocando-a com a face virada para baixo à sua frente, passou as restantes a Jones. O conjunto era certamente espantoso: colinas cobertas de gelo, trenós puxados por cães, homens envolvidos em peles, e vastas ruínas decadentes contra um fundo de neve – ruínas cujos contornos bizarros e cujos blocos enormes de pedra dificilmente poderiam ser descritos. Uma vista à luz do flash mostrava uma incrível câmara interior com entalhes selvagens e um trono curioso cujas proporções não poderiam ter sido desenhadas para um ocupante humano. Os entalhes da alvenaria gigantesca – altas paredes peculiarmente abobadadas
–          eram grandemente simbólicos e envolviam tanto desenhos completamente desconhecidos quanto certos hieróglifos citados de modo sombrio em legendas obscenas.  Sobre o trono estampava-se o mesmo símbolo temerário que se via pintado acima da porta de madeira da oficina. Jones lançou um olhar nervoso àquele portal fechado. Com toda certeza, Rogers andara por lugares estranhos e vira coisas estranhas. Entretanto aquela fotografia louca do interior podia ser facilmente uma fraude – tirada de um cenário bem montado. Não se deve ser tão crédulo. Mas Rogers continuava.
–          Bem, embarcamos a caixa num navio que saía de Nome e chegamos a Londres sem nenhum problema. Foi a primeira vez em que trouxemos alguma coisa com chances de estar viva. Não o coloquei em exibição, porque havia algo mais importante a fazer por Ele. Precisava do alimento sacrificial, pois se tratava de um deus. Obviamente eu não poderia Lhe dar o tipo de sacrifícios que Ele costumaria receber em sua época, pois tais coisas não existem agora. Mas havia outras que podiam servir. O sangue é a vida, você sabe. Mesmo os lêmures e os elementais que são mais velhos do que a terra hão de vir quando o sangue de homens ou animais for oferecido sob as condições corretas.
A expressão na face do narrador estava se tornando mais e mais alarmante e repulsiva, o que fez Jones estremecer em sua cadeira. Rogers pareceu notar o nervosismo de seu hóspede e prosseguiu, com um sorriso distintamente mau:
–          Foi no último ano que O consegui e desde então tenho tentado ritos e sacrifícios. Orabona não tem sido de muita ajuda, pois esteve sempre contra a idéia de despertá-Lo. Ele O odeia, provavelmente porque teme o que Ele poderá vir a significar. Carrega uma pistola durante todo o tempo, para se proteger – tolo, como se houvesse proteção humana contra Ele! Se alguma vez o vir sacar a pistola, o estrangularei. Queria que eu O matasse e fizesse uma efígie d’Ele. Mas já tracei meus planos e estou chegando ao topo, a despeito de todos os covardes como Orabona e dos malditos céticos de nariz empinado como você, Jones! Já entoei os cantos e realizei certos sacrifícios, e na semana passada a transição ocorreu. O sacrifício foi – recebido e apreciado!
Rogers lambia mesmo os lábios, enquanto Jones se mantinha incomodamente rígido. O expositor parou e se ergueu, cruzando o cômodo em direção ao pedaço de aniagem para o qual vinha olhando freqüentemente. Abaixando-se, agarrou um dos cantos e voltou a falar:
–          Você já riu bastante de minha obra – e agora é hora de conhecer alguns fatos. Orabona me diz que você ouviu um cachorro ganir por aqui esta tarde. Sabe o que isso significava?
Jones olhava. Apesar de toda a sua curiosidade, teria preferido ir embora sem obter maiores luzes acerca do ponto que tanto o intrigara. Mas Rogers foi inexorável e começou a levantar o quadrado de aniagem. Debaixo dele jazia uma massa retorcida e quase disforme que Jones demorou a classificar. Seria alguma coisa que vivera e que algum agente comprimira, privara de todo o sangue, espicaçara em mil lugares e costurara num monte mole e desossado de puro grotesco? Após um instante, Jones compreendeu o que poderia ser. Era o que restara de um cachorro – um cachorro, talvez de tamanho considerável e de uma cor esbranquiçada. A raça estava além de qualquer reconhecimento, porque a distorção tinha acontecido de um modo inominável e ultrajante. Grande parte do pêlo fora queimada por algum tipo de ácido, e a pele exposta e exangue estava marcada por inumeráveis feridas de incisões circulares. A forma de tortura necessária para obter semelhantes resultados teria sido inimaginável.
Eletrizado por uma pura repulsa que ultrapassava seu crescente desgosto, Jones explodiu num grito:
–          Seu sádico maldito, seu demente, você faz uma coisa dessas e ainda ousa vir falar a um homem decente!
Rogers repôs a aniagem com um ricto maligno de desdém e encarou sem furioso hóspede. Suas palavras portavam uma calma pouco natural:
–          Ora, seu tolo, pensa que eu fiz isto? O que dizer? Não é humano e não tem intenção de ser. Sacrificar é meramente oferecer. Eu dei a Ele o cachorro. O que aconteceu é obra d’Ele, não minha. Precisava ser alimentado com a oferta e a tomou à sua própria maneira. Mas deixe-me mostrar a você com o que Ele se parece.
Enquanto Jones hesitava, o outro foi até sua escrivaninha e apanhou a fotografia que tinha colocado com a face para baixo. Agora, estendia-a com um olhar curioso. Jones recebeu-a e examinou-a de um modo quase mecânico. Após um momento, o olhar do visitante se tornou mais concentrado e mais absorto, pois a força satânica do objeto representado tinha um efeito quase hipnótico. Certamente, Rogers tinha se superado em modelar o pesadelo feérico que a câmera capturara. A coisa era obra de um gênio férvido e infernal, e Jones se perguntou como o público reagiria quando fosse colocada em exibição. Algo tão monstruoso não tinha direito de existir – provavelmente a mera contemplação do mesmo, depois que fora feito, teria completado o desajuste na mente de quem o fizera, levando-o a uma adoração com sacrifícios brutais. Só uma firme sanidade poderia resistir à sugestão insidiosa de que tal blasfêmia era – ou teria sido -alguma forma exótica e mórbida de vida efetiva.
A coisa na imagem estava agachada ou se balançava sobre o que parecia ser uma engenhosa reprodução do trono monstruosamente entalhado da outra fotografia curiosa. Descrevê-la com qualquer palavra comum teria sido impossível, pois o que quer que seja de minimamente parecido com ela jamais ocorreu à imaginação da humanidade sã. Representava alguma forma vagamente conectada com os vertebrados deste planeta – embora não se pudesse ter certeza disso. Sua compleição era ciclópica, já que mesmo agachada sua altura dava quase duas vezes a de Orabona, o qual aparecia ao seu lado. Examinando atentamente, seria possível traçar suas aproximações com as feições corporais dos vertebrados superiores.
Havia um torso quase globular, com seis longos e sinuosos membros terminando em patas de crustáceo. Da extremidade superior protuberava, como uma bolha, um glóbulo subsidiário; seu triângulo de três olhos fixos de peixe, sua tromba de um pé de comprimento e evidentemente flexível, e um sistema lateral distendido, semelhante a guelras, sugerindo que se tratava de uma cabeça. Grande parte do corpo era coberta pelo que a princípio parecia ser pêlos, mas que a um exame mais atento provava ser uma densa floração de tentáculos negros e delgados ou filamentos de sucção, cada qual terminando numa boca que sugeriria uma cabeça de áspide. Sobre a cabeça e abaixo da tromba os tentáculos tendiam a ser mais longos e grossos, marcados com tiras espiraladas – sugerindo as tradicionais serpentes-madeixas da Medusa. Insinuar que aquilo podia ter uma expressão parece paradoxal; no entanto Jones sentiu que aquele triângulo de olhos protuberantes de peixe e aquela tromba pousada obliquamente exalavam um ar de ódio, voracidade e gritante crueldade, incompreensível aos humanos porque se misturava a outras emoções estranhas a este mundo e a este sistema solar. Nessa anormalidade bestial, refletiu, Rogers devia ter despejado de uma só vez toda a sua maligna insanidade e todo o seu inaudito gênio escultórico. A coisa era incrível – e, não obstante, a fotografia provava sua existência.
Rogers interrompeu suas divagações.
–          Bem, o que acha d’Ele? Ainda tem dúvidas sobre o que estraçalhou o cachorro e o sugou inteiro com um milhão de bocas? Precisava de alimento – e precisará de mais. Ele é um deus, e eu sou o primeiro sacerdote de Sua hierarquia final. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os seus Mil Jovens!
Jones baixou a fotografia, com desgosto e pena.
–          Olhe aqui, Rogers, é melhor abandonar isso. Existem limites, você sabe. É um grande trabalho, e tudo o mais, mas não faz bem a você. Melhor não o ver mais – deixar que Orabona o quebre e tentar esquecê-lo. E deixe-me rasgar essa reprodução bestial também.
Com um resmungo, Rogers arrebatou a fotografia e devolveu-a à escrivaninha.
–          Idiota – você – e ainda pensa que Ele seja uma fraude! Ainda acha que eu O fiz e ainda acha que minhas figuras não são mais que cera inerte! Ora, que se dane, você saberá. Não agora, porque Ele está descansando após o sacrifício, mas mais tarde. Oh, sim, você não duvidará de Seu poder então.
Enquanto Rogers olhava para a porta interna com o cadeado, Jones apanhou seu chapéu e sua bengala de um banco próximo.
–          Muito bem, Rogers, deixe para mais tarde. Preciso ir agora, mas o procurarei de novo amanhã ao entardecer. Reflita sobre meu conselho e veja se não faz sentido. Pergunte a Orabona o que ele acha também.
Rogers arreganhou os dentes de um modo animalesco.
–          Precisa ir agora, hein? Com medo, afinal! Com medo, apesar de toda a fanfarronice! Você diz que as efígies são apenas cera e, no entanto, dá o fora quando começo a provar que não o são. Você é como os demais que aceitam minha aposta de que não ousam passar uma noite inteira no museu – chegam valentemente, mas depois de uma hora gritam e esmurram a porta implorando para sair! Quer que eu consulte Orabona, hein? Vocês dois – sempre contra mim! Vocês querem barrar o estabelecimento de Seu reino vindouro!
Jones manteve a calma.
–          Não, Rogers, não há ninguém contra você. E não estou com medo de suas figuras, também, até porque admiro sua arte. Mas estamos ambos um pouco excitados esta noite, e imagino que algum descanso nos fará bem.
Outra vez Rogers barrou a saída de seu hóspede.
–          Sem medo, hein? Então por que está tão aflito em sair? Olhe aqui, você tem ou não tem coragem de ficar aqui sozinho no escuro? Por que tanta pressa, se você não acredita n’Ele?
Uma nova idéia parecia ter ocorrido a Rogers, e Jones olhou-o atentamente.
–          Ora, não tenho nenhuma pressa em especial; mas de que adiantaria eu permanecer sozinho aqui? O que isso provaria? Minha única objeção é que não é confortável para dormir. Que benefício traria para qualquer de nós?
Dessa vez, foi a Jones que ocorreu uma idéia. Ele prosseguiu, num tom de conciliação:
–          Pense bem, Rogers; apenas lhe perguntei o que seria provado se eu ficasse, quando nós dois o sabemos. Seria provado que suas efígies são apenas efígies, e que você não devia deixar sua imaginação fluir como tem fluído ultimamente. Suponha que eu fique. Se eu me mantiver firme  até o amanhecer, você aceitará uma nova visão das coisas, tirará umas férias e deixará que Orabona destrua essa sua nova coisa? Vamos lá, não é um jogo honesto?
A expressão na face do expositor era difícil de decifrar. Parecia óbvio que ele estivesse pensando rápido e que sobre um emaranhado de emoções conflitantes o triunfo maligno o estava dominando. Sua voz soou embargada, quando respondeu:
– Honesto o bastante! Se você se mantiver firme, aceitarei seu conselho. Sairemos para jantar e depois retornaremos. Trancarei você no cômodo de exibição e irei para casa. Pela manhã, retornarei antes de Orabona – ele chega meia hora antes dos outros – e verei como você está. Mas não o tente, a menos que esteja muito seguro de seu ceticismo. Outros fraquejaram – a oportunidade é sua. E suponho que umas batidas na porta de fora sempre trarão um policial. Você poderá não gostar, depois de algum tempo – e estará no mesmo edifício, mas não no mesmo cômodo que Ele.
Quando atravessaram a porta dos fundos em direção ao pátio sombrio, Rogers levou consigo o pedaço de aniagem com seu repulsivo conteúdo. Próximo ao centro do pátio havia um bueiro, cuja tampa o expositor ergueu em silêncio e com um acento de arrepiante familiaridade. Com invólucro e tudo, o fardo desceu ao oblívio de uma cloaca labiríntica. Jones estremeceu e instintivamente se esquivou ao contato da vampiresca figura ao seu lado, enquanto saíam para a rua.
Num tácito consentimento mútuo, não jantaram juntos, mas concordaram em se encontrar às sete diante do museu.
Jones apanhou um táxi e respirou aliviado depois que cruzou a Ponte Waterloo e sentiu que se aproximava da Strand alegremente iluminada. Satisfez-se com um café frugal e em seguida se recolheu a casa em Portland Place, para tomar um banho e apanhar algumas coisas. Perguntou-se, um tanto improficuamente, o que Rogers estaria fazendo. Tinha ouvido que o homem possuía uma casa vasta e penumbrosa em Walworth Road, repleta de livros obscuros e proibidos, parafernálias ocultas e imagens de cera que preferia não colocar em exposição. Orabona, sabia-se, vivia num setor separado dessa mesma casa.
Às onze, Jones encontrou Rogers à sua espera junto à porta do porão na Southwark Street. Trocaram escassas palavras, mas cada qual parecia lutar com uma tensão ameaçadora. Concordaram em que somente o salão de exibição deveria compor o cenário da vigília, e Rogers não insistiu para que o outro se alojasse na alcova “para adultos” dos supremos horrores. O expositor, após apagar todas as luzes do estúdio, fechou a porta daquela cripta com uma das chaves de seu volumoso molho. Sem sequer um aperto de mãos, atravessou a porta da rua, trancou-a atrás de si e galgou os desgastados degraus que conduziam ao pavimento lá fora. Enquanto o som de suas passadas esmorecia, Jones se deu conta de que a longa e tediosa vigília havia começado.
Mais tarde, na treva absoluta do grande porão arqueadado, Jones amaldiçoou sua própria ingenuidade infantil, que o tinha colocado ali. Durante a primeira meia hora, acendeu e apagou sua lanterna de bolso a intervalos regulares, mas estar sentado agora num dos bancos do expositor, em plena escuridão, tornara-se uma tarefa enervante. A cada vez que a lanterna faiscava, algum objeto mórbido e grotesco aparecia – uma guilhotina, algum inominável monstro híbrido, uma face barbada, repleta de malignidade, ou um corpo com emanações vermelhas escorrendo de uma garganta cortada. Jones sabia que nenhuma realidade sinistra se ligava a essas coisas, mas após a primeira meia hora preferiu não as ver mais.
Por que se dera ao trabalho do provocar aquele maluco ele mal podia dizer. Teria sido muito mais simples deixá-lo entregue a si mesmo ou ter chamado um especialista. Provavelmente, refletiu, influenciara-o o sentimento de empatia que um artista tem por outro. Havia suficiente genialidade em Rogers para torná-lo merecedor de toda oportunidade possível de que alguém o ajudasse a se livrar de sua crescente mania. Qualquer homem que pudesse imaginar e construir as coisas incrivelmente vivas que ele tinha produzido não estaria distante de uma real grandeza. Ele tinha a fantasia de um Sime ou de um Doré reunida ao artesanato minucioso e científico de um Blatschka. Com efeito, ele dera ao mundo do pesadelo aquilo que os Blatschkas, com seus modelos de plantas maravilhosamente acurados, feitos com vidro finamente retorcido e colorido, tinham dado ao mundo da botânica.
A meia-noite as batidas de um relógio distante filtraram-se através da escuridão, e Jones se sentiu animado pela mensagem de um mundo exterior que ainda vivia. A câmara de teto arqueado do museu assemelhava-se a um túmulo – perturbadora em sua extrema solidão. Mesmo um camundongo teria sido uma companhia razoável; e, no entanto, Rogers aventara que – por “certas razões”, conforme dissera – camundongos ou quaisquer insetos jamais se aproximaram do lugar. Era bastante curioso, conquanto parecesse verdade. A imobilidade e o silêncio eram virtualmente totais. Se ao menos alguma coisa produzisse um som! Ele agitou os pés, e os ecos repercutiram na quietude absoluta. Tossiu, mas havia o que quer que fosse de zombeteiro nas reverberações em staccato. Ele não podia, reconheceu, simplesmente conversar consigo mesmo. Isso significaria uma desintegração nervosa. O tempo parecia escoar com uma lentidão anormal e desconcertante. Ele poderia jurar que horas inteiras tinham transcorrido desde que acendera a lanterna pela última vez durante a vigília, porém mal havia batido meia-noite.
Teria desejado que seus sentidos não fossem tão extraordinariamente aguçados. Alguma coisa na quietude e na escuridão parecia tê-los afiado, de modo que respondiam às mais ligeiras excitações com uma nitidez que dificilmente se consideraria normal. Seus ouvidos pareciam, às vezes, captar um débil, evasivo sussurro que não se poderia sem erro identificar como sendo o rumor das ruas esquálidas lá fora; e ele pensou em coisas vagas e irrelevantes, como a música das esferas ou a vida ignota, inacessível, de dimensões alienígenas pressionando contra a nossa. Rogers não raro especulava sobre tais coisas.
Os espectros de luz flutuante sobre seus olhos repletos de treva pareciam inclinados a assumir curiosas simetrias de padrão e movimento. Ele freqüentemente se indagara acerca desses estranhos raios provenientes do insondável abismo que cintila diante de nós na ausência de toda iluminação terrestre, mas nunca conhecera nenhum que se comportasse tal como esses se comportavam. Faltava-lhes a repousante errância das manchas de luz ordinária – como se sugerindo alguma vontade ou propósito além de qualquer concepção terrestre.
Então veio aquela sugestão de estranhos estremecimentos. Nada estava aberto; no entanto, a despeito da geral imobilidade do ar, Jones sentiu que a atmosfera não parecia uniformemente parada. Havia variações intangíveis de pressão – não decididas o suficiente para sugerir o repugnante patear de entidades desconhecidas. Estava anormalmente frio também. Ele não gostou de nada disso. O ar pareceu-lhe salgado, como se se houvesse misturado à salinidade de águas subterrâneas, e havia a vaga impressão de algum odor de inefável mofo. Durante o dia, ele nunca reparara que as figuras de cera tivessem odor. Mesmo agora aquela impressão incerta não correspondia ao cheiro que figuras de cera devessem ter. Assemelhava-se mais ao discreto odor dos espécimes num museu de história natural. Curioso, em vista das declarações de Rogers de que suas figuras não eram de todo artificiais – de fato, tal declaração é que levava a imaginação a conjurar a suspeita olfativa. É preciso que se reaja aos excessos da imaginação – não foram tais coisas que puseram louco o pobre Rogers?
No entanto a extrema solidão do lugar era amedrontadora. Mesmo as badaladas mais distantes pareciam provir de golfos cósmicos. Isso fez com que Jones se lembrasse daquela fotografia insana que Rogers lhe mostrara – a câmara horrendamente entalhada com o trono críptico que o sujeito alegara ser parte de uma ruína de três milhões de anos localizada em ermos temidos e inacessíveis do Ártico. Talvez Rogers tivesse ido ao Alasca, mas aquela foto não seria mais que uma encenação. Não havia como ser de outro modo, com todos aqueles entalhes e aqueles símbolos terríveis. E aquela forma monstruosa, que se supunha ter sido encontrada sobre o trono – que arroubo de mórbida fantasia! Jones se perguntou a que distância realmente estaria da insana obra-prima de cera – provavelmente ela estaria guardada atrás daquela maciça porta com o cadeado, que levava a algum recesso para além da oficina. Mas de nada serviria conjeturar acerca de uma imagem de cera. Não estava aquela mesma sala repleta de tais coisas, algumas delas pouco menos horríveis do que o temível “Ele”? E, para além de um delgado biombo à esquerda, estava a alcova “Para adultos somente”, com seus inomináveis fantasmas de delírio.
A proximidade das inumeráveis formas de cera começou a bulir mais e mais com os nervos de Jones à medida que os minutos avançavam. Ele conhecia o museu bem o bastante para não se sentir livre de suas imagens usuais nem mesmo na escuridão total. Na verdade, a escuridão tinha o efeito de adicionar às imagens lembradas algumas nuanças imaginativas realmente perturbadoras. A guilhotina parecia ranger, e a face barbada de Landru – o carrasco de suas cinqüenta esposas – se contorcia em expressões de monstruosa ameaça. Da garganta cortada de Madame Demers parecia emanar um horrível som borbulhante, enquanto a vítima sem cabeça e pernas de um esquartejador tentava se aproximar mais e mais sobre suas amputações sangrentas. Jones passou a fechar seus olhos na expectativa de que isso pudesse afastar as imagens, mas descobriu que era inútil. Além disso, quando ele fechava os olhos os padrões estranhos e despropositados das manchas de luz se tornavam mais pronunciados e inquietadores.
Então, subitamente, ele começou a tentar reter as imagens que antes tinha se esforçado para banir. Tentou retê-las porque estavam dando lugar a outras mais assustadoras. Contra a vontade, sua memória se pôs a reconstruir as blasfêmias não-humanas que espreitavam pelos cantos mais obscuros, e essas demoníacas formações híbridas se enroscavam e se sacudiam em sua direção como se tentando envolvê-lo num círculo. O negro Tsathoggua se converteu, de uma gárgula semelhante a um sapo, numa linha longa e sinuosa com centenas de pés rudimentares; e um delgado e flexível abutre noturno estendeu suas asas como se para avançar e sufocar o vigilante. Jones segurou-se para não gritar. Reconheceu que estava revertendo aos terrores tradicionais de sua infância e determinou usar sua razão adulta para conter os fantasmas. Ajudou um pouco, percebeu, piscar a luz novamente. Por medonhas que fossem as imagens mostradas, não o eram tanto quanto as que sua fantasia sacava da extrema escuridão.
Mas houve recaídas. Mesmo à luz da lanterna ele não podia deixar de suspeitar que um furtivo e ligeiro tremor se verificava no biombo que escondia a terrível alcova “para adultos, somente”. Sabia o que estava ali atrás e estremecia. A imaginação evocava as formas chocantes do fabuloso Youg-Sothoth – um mero aglomerado de globos iridescentes, mas ainda assim estupendo em sua maligna sugestividade. Não estaria aquela massa amaldiçoada flutuando lentamente em sua direção e se chocando contra a divisória em seu caminho? Uma pequena protuberância na tela à direita sugeria o chifre pontudo de Gnoph-keh, a coisa peluda, mitológica, dos gelos de Greenland, que às vezes caminhava sobre duas pernas, às vezes sobre quatro, e às vezes sobre seis. Para tirar isso da cabeça, Jones se arrojou num ímpeto contra a alcova infernal, com a lanterna acesa à sua frente. Certamente, nenhum de seus receios se comprovou. No entanto não estariam os longos tentáculos faciais do grande Cthulhu movendo-se realmente, de um modo lento e insidioso? Sabia que eram flexíveis, mas não havia notado que o sopro de ar causado pelo seu próprio avanço fosse suficiente para colocá-los em movimento.
Retornando a seu assento do lado de fora da alcova, fechou os olhos e deixou que as manchas simétricas de luz fizessem seu estrago. O relógio distante deu uma única batida. Teria sido apenas uma? Acendeu a lanterna sobre seu relógio e viu que era precisamente uma hora. Seria penoso, decerto, esperar até de manhã. Rogers só chegaria por volta das oito horas, antes mesmo de Orabona. Haveria luz lá fora, no porão principal, bem antes que isso ocorresse, mas nenhum raio penetraria ali. Todas as janelas neste porão tinham sido bloqueadas pelas três mais pequenas que davam para o pátio. Uma péssima vigília, ao que tudo indicava.
Seus ouvidos captavam maiores alucinações agora – pois ele poderia jurar que estava ouvindo passadas furtivas e inexoráveis na oficina, para além da porta trancada. Não havia que ficar pensando no horror chamado “Ele”, que Rogers se privara de exibir. A coisa era uma contaminação – havia enlouquecido o seu criador e agora mesmo a sua imagem suscitava atemorizantes fantasias. Jazia, obviamente, por detrás daquela pesada porta de madeira com o cadeado. As passadas seriam, certamente, pura imaginação.
Então julgou ter ouvido a chave girar na porta do estúdio. Acendendo a lanterna, nada mais viu que o vetusto portal de seis folhas em sua posição costumeira. Outra vez apelou para a treva e fechou seus olhos, mas veio em seguida uma alucinante ilusão de rangido – não a guilhotina, desta vez, mas o lento e furtivo abrir-se da porta do estúdio. Ele não gritaria. Se gritasse, estaria perdido. Ouviu-se uma espécie de patear ou de remexer, e estava avançando lentamente em direção a ele. Precisava manter o controle sobre si mesmo. Não fizera o mesmo quando o inominável em forma de cérebro tentou acuá-lo? A movimentação parecia mais próxima, e sua resolução lhe faltava. Ele não gritou, mas apenas gaguejou uma intimação:
– Quem está aí? Quem é você? O que você quer?
Não houve resposta, porém a agitação prosseguia. Jones não soube o que mais temia fazer – se acender a lanterna ou se ficar quieto no escuro, enquanto a coisa avançava sobre ele. Esta coisa era diferente – sentiu no fundo – dos outros terrores do anoitecer. Seus dedos e sua garganta funcionavam espasmodicamente. O silêncio era impossível, e o suspense da escuridão extrema começava a se revelar a mais intolerável das condições. Outra vez gritou, histericamente: “Alto! Quem está aí?” – enquanto acendia o facho esclarecedor. Então, paralisado pelo que viu, deixou cair a lanterna e gritou – não uma só, mas muitas vezes.
Vinha contorcendo-se em sua direção a forma gigantesca e blasfema de algo que não era inteiramente macaco nem inteiramente um inseto. Sua carapaça pendia solta sobre o corpo, e o seu rudimento rugoso de cabeça – olhos mortiços – balançava de um lado para o outro como a de um bêbado. Suas patas dianteiras estavam estendidas, com as garras abertas, e todo o seu corpo exalava malignidade, a despeito de sua completa ausência de expressão. Após os gritos e a volta da escuridão, a criatura saltou e, num instante, manteve Jones preso ao chão. Não houve luta, porque o vigilante desmaiou.
A inconsciência de Jones não deve ter durado mais que um instante, pois a coisa inominável o estava arrastando através da escuridão quando ele começou a se recobrar. O que o despertou foram os sons que a coisa emitia – ou, antes, a voz com que os produzia. Era uma voz humana e algo familiar. Somente uma criatura viva poderia estar por trás daqueles acentos ásperos e febris que entoavam cantos a algum horror desconhecido.
 – Iä! Iä! – uivava. – Estou chegando, ó Rhan-Tegoth, chegando com o alimento. Tu esperaste muito e te alimentaste mal, mas agora terás o que foi prometido. E ainda mais, pois que, em vez de Orabona, terás alguém de alto nível que duvidou de ti. Poderás espremê-lo e sugá-lo, com todas as suas dúvidas, e te fortalecerás assim. E após, entre os homens, ele há de ser mostrado como um monumento à tua glória. Rhan-Tegoth, infinito e invencível, sou teu escravo e teu sumo sacerdote. Estás faminto, e te alimentarei. Li o sinal e te conduzi. Com sangue te nutrirei, e hás de me nutrir com poder. Iä! Shub-Niggurath! O Bode com os Mil Jovens!
Num instante, todos os terrores da noite abandonaram Jones como um manto que se despe. Ele se tornou de novo senhor de sua mente, pois reconhecia o perigo muito terreno e material com que tinha de lidar. Não era nenhum monstro de fábula, mas um louco perigoso. Era Rogers, vestindo alguma fantasia de pesadelo produzida por seu próprio engenho insano, e prestes a realizar algum apavorante sacrifício ao deus-demônio que ele mesmo moldara na cera. Claramente, ele devia ter penetrado na oficina pela porta do pátio, envergado seu disfarce e então avançado para sua vítima acuada e alquebrada pelo medo. Sua força era prodigiosa, e se ele devia ser impedido, cumpria agir rapidamente. Contando com a confiança do louco em sua inconsciência, Jones decidiu surpreendê-lo, aproveitando-se de um relaxamento do abraço. O contato com alguma mobília mostrou-lhe que estava cruzando o cômodo em direção às trevas do estúdio.
Com a força que nos concede o medo mortal, Jones deu um súbito arranco, saindo da posição meio deitada na qual estava sendo arrastado. Por um instante, viu-se livre das mãos do maníaco atônito, e num outro instante um golpe de sorte na escuridão colocou suas próprias mãos na goela oculta do perseguidor. Simultaneamente, Rogers o agarrou de novo, e sem maiores avisos estavam os dois atracados numa luta desesperada de vida e morte. O preparo atlético de Jones, sem sombra de dúvida, era sua única salvação; pois seu louco adversário, livre de qualquer inibição com respeito a jogo limpo, decência ou mesmo autopreservação, era uma máquina de selvagem destruição tão formidável quanto qualquer lobo ou pantera.
Urros guturais pontuavam às vezes a horrível peleja na treva. Sangue jorrava, vestes rasgavam-se, e Jones por fim sentiu de fato, entre os dedos, a garganta do maníaco, despida de sua máscara espectral. Não disse palavra alguma, mas aplicou cada fragmento de sua energia na defesa de sua vida. Rogers chutava, esmurrava, cabeceava, mordia, arranhava e se debatia – e no entanto encontrava forças para emitir algumas frases ocasionais. A maior parte do que dizia aflorava num jargão repleto de referências ao “Ele” ou “Rhan-Tegoth”, e para os nervos desgastados de Jones era como se os gritos ecoassem rosnados e latidos demoníacos a uma infinita distância. Por último, estavam rolando no chão, revirando bancos ou se chocando contra as paredes e as fundações de tijolos da fornalha central. Próximo ao fim, Jones não estava certo de poder se salvar, mas o acaso interveio a seu favor. Um golpe de seu joelho contra o peito de Rogers produziu um relaxamento geral, e no momento seguinte ele reconheceu que tinha vencido.
Embora mal pudesse agüentar-se, Jones se levantou e apalpou as paredes à procura do interruptor – pois sua lanterna sumira juntamente com grande parte de suas roupas. Enquanto avançava, arrastou consigo seu oponente inerte, temendo um ataque súbito quando o mesmo se recobrasse. Encontrando a caixa dos interruptores, remexeu-a até que deparou com o acionador direito. Então, quando a caótica desordem do estúdio explodiu numa súbita cintilação, pôs-se a amarrar Rogers com cordas e correias que facilmente descobriu à sua volta. O disfarce do sujeito
–          ou o que restara dele – parecia feito de uma espécie estranhíssima de couro. Por alguma razão, a carne de Jones se retraiu ao tocá-lo; e parecia exalar-se daquilo um odor ferruginoso e alienígena. Por baixo, entre as roupas normais, estava o molho de chaves de Rogers, que o exaltado vencedor arrebatou como seu passaporte final para a liberdade. As cortinas sobre as pequenas janelas de correr estavam todas cuidadosamente cerradas, e ele as deixou ficar assim.
 Lavando o sangue da batalha com uma bacia conveniente, Jones vestiu as mais ordinárias -sempre ruins – roupas que conseguiu encontrar nos cabides do vestuário. Experimentando a porta para o pátio, descobriu que a tranca não exigia uma chave pelo lado de dentro. No entanto ele conservou consigo o molho de chaves, de modo a poder voltar com ajuda – pois, obviamente, o melhor a fazer era chamar um alienista. Não havia telefone no museu, mas não seria demorado encontrar um restaurante noturno ou uma farmácia que dispusesse de um. Tinha quase aberto a porta, quando uma torrente de repulsivas imprecações, proveniente do cômodo, lhe informou que Rogers – cujos ferimentos mais visíveis se restringiam a um sulco longo e profundo na face esquerda – recobrara a consciência.
–          Tolo! Filhote de Noth-Yidik e eflúvio de K’thun! Filho dos cães que uivam no maelstrom de Azathoth! Você teria sido sagrado e imortal, e agora está traindo a Ele e ao Seu sacerdote! Mas cuidado – pois Ele tem fome! Teria sido Orabona – aquele maldito cão traiçoeiro, sempre pronto a me trair a mim e a Ele – mas darei a honra a você. Agora, ambos precisamos ter cuidado, pois Ele não é gentil com seu sacerdote.
“Iä! Iä! A vingança está próxima! Sabe que você teria se tornado imortal? Olhe para a fornalha! Há um fogo pronto a ser aceso, e existe cera no caldeirão. Eu teria feito com você o que fiz com outras criaturas outrora viventes. Eh! Você, que declarou serem apenas cera todas as minhas efígies, teria se tornado uma efígie de cera também! A fornalha estava preparada! Depois que Ele se houvesse nutrido, e você tivesse ficado como aquele cachorro que lhe mostrei, eu teria tornado imortais os seus restos compactados e perfurados! A cera seria o bastante. Não viu como sou um grande artista? Cera sobre cada poro – cera sobre cada polegada de você – Iä! Iä! E para todo o sempre o mundo teria olhado para a sua carcassa mofina e se espantado de que eu pudesse imaginar e produzir semelhante coisa! Eh! e Orabona teria sido o próximo, e outros depois dele -e assim cresceria minha família de cera!
“Cão – ainda acha que fiz todas as efígies? Por que não dizer: preservei? Reconhece agora os estranhos lugares pelos quais andei e as coisas estranhas que trouxe comigo. Covarde – você nunca teria peito para encarar o rastejante dimensional cuja pele eu vesti para assustá-lo – a mera visão de sua forma viva, ou sequer um pensamento dela, o mataria de medo num instante! Iä! Iä! Ele aguarda faminto pelo sangue que é vida!”
Rogers, encostado à parede, oscilava para a frente e para trás em suas amarras.
–          Ouça, Jones, se eu o deixar ir, você me deixará ir também? É preciso que Seu sumo sacerdote cuide d’Ele. Orabona será suficiente para mantê-Lo vivo. Podia ter sido você, mas você rejeitou a honra. Não o importunarei mais. Deixe-me ir, e compartilharei com você o poder que Ele me trará. Iä! Iä! Grande é Rhan-Tegoth! Deixe-me ir! Deixe-me ir! Ele está morrendo de fome lá embaixo, atrás daquela porta, e se Ele morrer os Antigos nunca mais retornarão. Eh! Eh! Deixe- me ir!
Jones apenas balançou a cabeça, embora a enormidade das idéias do expositor o revoltasse. Rogers, olhando agora alucinadamente para a porta de madeira com o cadeado, batia mais e mais com a cabeça contra a parede de tijolos e esmurrava com os cotovelos bem atados. Jones temeu que ele se machucasse, e avançou para amarrá-lo um pouco mais firmemente a algum objeto estacionário. Encolhendo-se, Rogers se desviou dele e começou a emitir uma série de uivos frenéticos, cuja inumanidade extrema e monstruosa era estarrecedora e cujo volume agudo era quase inacreditável. Parecia impossível que uma garganta humana produzisse ruídos tão altos e cortantes, e Jones sentiu que se continuassem não haveria necessidade de pedir ajuda por telefone. Não demoraria para que um policial viesse investigar, mesmo admitindo-se que não havia vizinhos para ouvir entre os armazéns daquele distrito deserto.
Aquela criatura toda amarrada, que tinha começado a se contorcer ao longo do piso, agora alcançava a porta com o cadeado e batia trovejantemente com a cabeça contra ela. Jones receou amarrá-lo ainda mais e desejou que a luta o tivesse deixado exausto o suficiente. Essa seqüência violenta dava-lhe horrivelmente nos nervos, e ele começou a sentir o retorno das indescritíveis inquietações que havia sentido no escuro. Tudo o que presenciara acerca de Rogers e do museu era tão infernalmente mórbido e sugestivo de negras visões de além vida! Era inquietador pensar na obra-prima em cera, de genialidade anormal, que naquele momento deveria estar à espreita, quase à mão, na escuridão que havia do outro lado da pesada porta com o cadeado.
Então, alguma coisa aconteceu que trouxe mais um arrepio à espinha de Jones e fez com que cada pêlo de seu corpo – mesmo os suaves tufos nos dorsos das mãos – se arrepiasse com um vago medo que não permitia classificação. Rogers, subitamente, parara de gritar e de bater com a cabeça contra a maciça porta de madeira e lutava para se assentar, a cabeça pendida para um lado como se ouvindo alguma coisa com atenção. Inopinadamente, um sorriso de diabólico triunfo se estampou em seu rosto, e ele começou a falar de um modo ininteligível outra vez -agora num sussurro grave que contrastava estranhamente como seu anterior uivo estentórico.
–          Escute, tolo! Escute bem! Ele me ouviu e está vindo. Pode ouvi-Lo chapinhar para fora de seu tanque lá no fundo da eclusa? Eu a fiz bem funda, porque não havia nada melhor para Ele. Trata-se de um anfíbio, sabe? – você viu as guelras na fotografia. Chegou à terra vindo da plúmbea Yuggoth, onde as cidades jazem no fundo de um mar aquecido. Não pode ficar de pé ali – alto demais -, tem de se sentar ou de se agachar. Dê-me as chaves – precisamos deixá-Lo sair e nos ajoelharmos diante dele. Então sairemos à procura de um cão ou de um gato – ou quem sabe de algum bêbado – para lhe dar o sustento de que Ele precisa!
Não foi tanto o que o doido dissera, mas o modo como o dissera, que atingiu Jones tão profundamente. A confiança e a sinceridade extremas, insanas, que havia naquele sussurro louco eram lamentavelmente contagiantes. A imaginação, tremendo estímulo, acharia uma ameaça ativa naquela demoníaca figura de cera que espreitava oculta para além das grossas tábuas. Mirando a porta com inusitado fascínio, Jones reparou que ela exibia várias rachaduras, conquanto nenhum sinal de tratamento violento era visível daquele lado. Ele se perguntou que dimensões teria o cômodo ou despensa por trás dela e de que modo estaria colocada a figura de cera. A idéia do maníaco de um tanque com uma eclusa era tão conjeturável quanto todas as suas outras fabulações.
Logo, num instante terrível, Jones não teve forças sequer para respirar. A correia de couro que segurava para dar o último laço em Rogers escorregou de suas mãos, e um espasmo de tremor convulsionou-o da cabeça aos pés. Devia saber que o lugar o levaria à loucura, como fizera com Rogers – e agora estava louco. Estava louco, pois agora sofria alucinações mais esquisitas do que quaisquer outras que o tinham assaltado naquela noite. O louco convocava-o a ouvir o chapinhar de um monstro mítico no tanque que estava para além da porta – e agora, Deus poderoso, ele o ouvia!
Rogers percebeu o espasmo de horror que se estampou no rosto de Jones e o transformou numa máscara de expectativa e de medo. Casquinou:
–          Afinal, tolo, acredita! Afinal você sabe! Ouve-O, e Ele vem! Dê-me as chaves, tolo -precisamos fazer a reverência e Lhe servir!
Mas Jones estava longe de prestar atenção em quaisquer palavras humanas, loucas ou sãs. Uma paralisia fóbica o colocou imóvel e semi-inconsciente, imagens selvagens precipitando-se de modo fantasmagórico em sua imaginação. Ouviu-se um chapinhar. Ouviu-se um patear ou um bulício, como o de grandes patas úmidas contra uma superfície sólida. Alguma coisa se aproximava. Suas narinas foram invadidas por um fedor, proveniente das frinchas daquela porta de pesadelo, ao mesmo tempo semelhante e distinto daquele que emana das jaulas dos mamíferos nos jardins zoológicos do Regent’s Park.
Ele não sabia mais se Rogers estava falando ou não. Tudo o que fosse real se desvanecera, e ele era uma estátua ob sedada por sonhos e alucinações tão antinaturais que se tornavam quase objetivas e independentes dele. Pensou ter ouvido um farejar ou um grunhir proveniente do abismo para além da porta; quando um súbito ruído, como o de um latido ou de uma trombeta, assaltou seus ouvidos, não teve certeza se teria vindo do maníaco amarrado, cuja imagem dançava diante de sua vista abalada. A fotografia daquela maldita coisa oculta de cera insistia em flutuar através de sua consciência. Tal coisa não tinha o direito de existir. Não o havia deixado louco?
Mesmo enquanto refletia, uma nova evidência de loucura lhe ocorreu. Alguma coisa, pensou, estava bulindo com a tranca da pesada porta com o cadeado. Estava batendo e arranhando e empurrando as grandes tábuas. Ouvia-se um martelar contra a madeira resistente, que se tornou mais e mais pronunciado. A fedentina era horrível. E agora o assalto contra aquela porta pelo lado de dentro se tornava uma saraivada maligna, determinada, como os ribombos num campo de batalha. Houve um ominoso estrondo – um despedaçamento – uma onda de fedor – uma tábua que caía – uma pata negra terminando numa pinça de caranguejo…
– Socorro! Socorro! Deus me ajude!… Aaaaaaa!.
Com grande esforço Jones consegue, hoje em dia, recordar-se de que sua paralisia fóbica explodiu na liberação de um súbito frenesi de fuga automática. Ora, ele provavelmente viveu uma daquelas fugas loucas e selvagens dos mais loucos pesadelos, pois parece que atravessou num ímpeto a cripta em desordem, de um único salto, escancarou a porta de saída, que se fechou e se trancou às suas costas com um estampido, disparou escada acima, saltando de três em três degraus, e cruzou alucinada e desorientadamente o pátio calçado de pedras em direção às ruas esquálidas de Southwark.
Aqui a memória pára. Jones não sabe como chegou a casa, e não há evidências de que tenha apanhado um táxi. Provavelmente, venceu todo o trajeto guiado por um instinto cego – através da Ponte Waterloo, ao longo do Strand e de Charing Cross, até as alturas de Haymarket e Regent Street e até sua própria vizinhança. Ele ainda usava a inusitada barafunda das roupas do museu, quando se tornou consciente o bastante para chamar o médico.
Uma semana mais tarde, os especialistas em nervos permitiram que ele deixasse o leito e saísse ao ar livre.
Mas ele não contou muita coisa aos especialistas. Sobre toda a sua experiência pendia um véu de loucura e pesadelo, e ele concluiu que o silêncio era a melhor opção. Quando se levantou, perscrutou atentamente todos os papéis que se acumularam desde aquela noite medonha, mas não encontrou nenhuma referência a nada de estranho no museu. O quanto, afinal, de tudo aquilo tinha sido realidade? Onde terminava a realidade e começava o sonho mórbido? Teria sua mente se despedaçado naquela escura câmara de exibição, e teria sido toda a luta com Rogers apenas uma fantasmagoria da febre? Teria ajudado em sua recuperação se ele conseguisse assentar alguns desses pontos enlouquecedores. Ele devia ter visto aquela maldita fotografia da imagem de cera denominada “Ele”, pois cérebro algum senão o de Rogers seria capaz de conceber semelhante blasfêmia.
Duas semanas transcorreram antes que ele tivesse coragem de retornar a Southwark Street. Partiu durante uma manhã, quando o maior volume de atividade sã estava ocorrendo naqueles antigos arredores de lojas e armazéns. A placa do museu ainda estava lá, e quando se aproximou viu que o lugar ainda estava aberto. O porteiro fez uma aceno de aprazível reconhecimento, enquanto ele cobrava coragem para entrar, e na câmara arqueada lá embaixo um assistente tocou animadamente no quepe. Talvez tudo tivesse sido apenas um sonho. Ousaria bater na porta do estúdio e procurar por Rogers?
Então Orabona avançou para cumprimentá-lo. Sua negra cara lambida tinha algo de sardônico, mas Jones sentiu que não era inamistosa. O outro falou, com uma ponta de sotaque:
–          Bom dia, Sr. Jones. Faz tempo que não o vemos por aqui. Deseja ver o Sr. Rogers? Lamento, mas ele não se encontra. Foi chamado para algum negócio na América e teve de ir. Sim, foi bem repentino. Estou no comando agora, aqui e na casa. Procuro manter o alto padrão do Sr. Rogers -até que ele volte.
O estrangeiro sorriu – talvez apenas por afabilidade. Jones mal sabia o que responder, mas se esforçou para balbuciar algumas perguntas sobre o dia seguinte à sua última visita. Orabona pareceu interessado nas perguntas, e teve o maior cuidado ao responder.
–          Oh, sim, Sr. Jones, o vinte e oito do mês passado. Lembro-me dele por muitas razões. Pela manhã – antes que o Sr. Rogers chegasse, você compreende? – encontrei o estúdio numa verdadeira barafunda. Havia muita – limpeza – por fazer. O trabalho da noite anterior durara até tarde, veja você. Um importante espécime novo, dado o seu processo secundário de cozimento. Assumi todo o controle quando cheguei.
“Era um espécime difícil de preparar – mas, naturalmente, o Sr. Rogers havia me ensinado o bastante. Ele é, como se sabe, um grande artista. Quando chegou, ajudou-me a completar o espécime – ajudou-me bem materialmente, lhe asseguro – mas saiu logo, sem sequer cumprimentar os homens. Como lhe disse, foi chamado de repente. Havia importantes reações químicas envolvidas. Faziam muito barulho – de fato, algumas pessoas lá fora imaginam ter ouvido vários tiros de pistola – uma idéia bem peculiar!
“Quanto ao novo espécime – é um assunto lamentável. Trata-se de uma grande obra-prima, desenhada e executada, você compreende, pelo Sr. Rogers. Ele verá o que aconteceu quando retornar.”
Outra vez Orabona sorriu.
A polícia, você sabe. Nós o colocamos em exibição há uma semana, e aconteceram dois ou três desmaios. Um pobre coitado teve um ataque epilético diante dele. Compreende, um pouquinho – mais forte – que o resto. Maior, por causa de uma coisa. Naturalmente, estava na alcova ‘para adultos’. No dia seguinte, dois homens da Scotland Yard deram uma olhada e disseram que era mórbido demais para ser exibido. Disseram que tínhamos de removê-lo. Foi um grande embaraço – tamanha obra-prima de arte – mas eu não me senti com autoridade para recorrer à justiça na ausência do Sr. Rogers. Ele detestaria semelhante publicidade, com a polícia envolvida mas quando retornar – quando retornar…
 Por uma ou outra razão, Jones sentiu uma onda crescente de desconforto e repulsa. Mas Orabona prosseguia:
–          Você é um conhecedor, Sr. Jones. Estou certo de que não violo nenhuma lei oferecendo-lhe uma demonstração particular. Pode ser que – de acordo, evidentemente, com a vontade do Sr. Rogers – venhamos a destruir o espécime algum dia – mas seria um crime.
Jones teve um forte ímpeto de recusar ver a coisa e fugir precipitadamente, mas Orabona já o conduzia pelo braço com um entusiasmo de artista. A alcova “adulta”, apinhada de inomináveis horrores, não tinha visitantes. Num canto distante, um largo nicho fora coberto por uma cortina, e em direção a ele é que avançou o sorridente auxiliar.
Você deve saber, Sr. Jones, que o título deste espécime é “O Sacrifício a Rhan-Tegoth”. Jones ficou violentamente abalado, mas Orabona não pareceu notar.
O deus colossal e informe é uma personagem de certas lendas obscuras que o Sr. Rogers tinha estudado. Tudo bobagem, com certeza, como você tantas vezes asseverou ao Sr. Rogers. Supõe-se que tenha vindo do espaço sideral e que tenha vivido no Ártico há três milhões de anos. Tratava seus sacrifícios de modo bastante peculiar e horrível, como verá. O Sr. Rogers o realizou com muita vivacidade e imaginação – mesmo quanto à face da vítima.
Em meio a violentos tremores, Jones se agarrou ao corrimão de bronze em frente ao nicho velado. Esteve mesmo para erguer a mão e impedir Orabona quando viu a cortina deslizar, mas um conflituoso impulso o deteve. O estrangeiro sorria triunfalmente.
–          Contemple!
Jones sentiu-se girar, mesmo agarrado ao corrimão.
–          Deus! – Deus do céu!
Com bons dez pés de altura, a despeito de sua postura agachada, rastejante, expressiva de infinita malignidade cósmica, uma monstruosidade de horror inacreditável aparecia saindo de um trono ciclópico de marfim coberto de relevos grotescos. No par central de suas seis pernas, segurava uma coisa amassada, esmagada, distorcida e exangue, perfurada por um milhão de picadelas e em alguns pontos corroída por algum ácido pungente. Somente a macilenta cabeça da vítima, pendendo invertida num dos lados, dava mostras de representar qualquer coisa de humana.
O monstro em si dispensaria qualquer título, para quem tivesse visto certa fotografia infernal. Aquela desgraçada imagem tinha sido mais que fiel e no entanto não podia comportar todo o horror que havia no gigantesco objeto real. O torso globular – a sugestão de cabeça algo semelhante a uma bolha – a tromba de um pé de comprimento – as guelras salientes – a monstruosa penugem das ventosas em forma de áspide – os seis membros sinuosos com suas patas negras e pinças de caranguejo – Deus! a familiaridade da pata negra terminando numa pinça de caranguejo!…
O sorriso de Orabona era simplesmente hediondo. Jones engasgou e fitou aquela exibição medonha com um fascínio crescente que o perturbou e o deixou perplexo. Que irrevelado horror o estava prendendo e forçando a olhar por mais um pouco e a procurar por detalhes? Aquilo tinha enlouquecido Rogers… Rogers, o artista supremo… disse que não eram artificiais…
Então ele localizou a coisa que o atraía. Era a cabeça pendente da macilenta vítima de cera e alguma coisa que ela implicava. Essa cabeça não era inteiramente destituída de uma face, e aquela face era familiar. Parecia-se com a face enlouquecida do pobre Rogers. Jones examinou melhor, mal sabendo por que o fazia. Não era natural que um egotista moldasse suas próprias feições em sua obra-prima? Haveria alguma coisa mais que a visão subconsciente tivesse capturado e ultrapassado em infinito terror?
A cera da face ressequida tinha sido manuseada com inigualável destreza. Aquelas picadas -quão perfeitamente reproduziam a miríade de feridas de algum modo infligidas àquele pobre cão! Mas havia algo mais. Na bochecha esquerda podia-se vislumbrar uma irregularidade que parecia transcender o esquema geral – como se o escultor tivesse procurado cobrir um defeito de sua primeira modelagem. Quanto mais Jones olhava para ela, mais ela o terrificava misteriosamente – e então, de súbito, ele se lembrou de uma circunstância que levou seu horror ao ápice. Aquela noite de abominação – a luta – o louco amarrado – e o corte longo e profundo na face esquerda do verdadeiro Rogers vivo…
Jones, abandonando o desesperado apoio do corrimão, tombou num desmaio total. Orabona continuava a sorrir.
H. P. Lovecraft
Extraído do site PDL

domingo, 12 de março de 2017

O Depoimento de Randolph Carter

REPITO-VOS, CAVALHEIROS, que vosso interrogatório é inútil. Detende-me aqui para sempre, se quiserdes; prendei-me ou executai-me se tendes necessidade de uma vítima para propiciar a ilusão a que chamais justiça. Não posso porém, dizer mais do que já disse. Contei-vos, com toda a sinceridade, tudo de que me lembro. Nada foi distorcido ou escamoteado, e se alguma coisa permanecer vaga, é apenas devido à nuvem escura que caiu sobre meu espírito – essa nuvem e a natureza nebulosa dos horrores que a fizeram abater-se sobre mim.
Digo mais uma vez: não sei do que foi feito de Harley Warren, embora pense – quaserezo para isso – que ele está em oblivio pacífico, se é que existe, em algum lugar, coisa tão bem aventurada. É verdade que por cinco anos fui seu melhor amigo e que, em parte compartilhei de suas terríveis pesquisas sobre o desconhecido. Não negarei, conquanto minha memória esteja insegura e vaga, que essa vossa testemunha nos possa ter visto juntos, na estrada de Gainsville, caminhando na direção do Pântano do Cipreste Grande às onze e meia daquela noite tenebrosa. Que levávamos lanternas elétricas, pás e um curioso rolo de fio, a que se prendiam certos instrumentos, eu mesmo me disponho a afirmar, pois todas essas coisas desempenharam um papel importante naquela cena hedionda que continua gravada à fogo em minha memória abalada. Mas com relação ao que se seguiu e ao motivo pelo qual fui encontrado sozinho e aturdido na margem do pântano, na manhã seguinte, devo insistir em que nada sei, salvo o que já vos narrei repetidamente. Dizei-me que nada existe no pântano ou em suas proximidades que pudesse constituir o cenário daquele episódio aterrador. Respondo que que eu nada sabia além do que vi. Visão ou pesadelo, pode ter sido – e visão ou pesadelo espero desesperadamente que tenha sido – mas, no entanto, é tudo o quanto minha mente reteu do que ocorreu naquelas horas chocantes depois que saímos da vista dos homens. E por que Harley Warren não voltou, somente ele ou seu espectro – ou alguma coisa inominável que não sei descrever – poderão dizer.
Como já tive ocasião de afirmar, eu conhecia bem, e de certa forma dividia, os estudos fantásticos de Harley Warren. De sua vasta coleção de livros estranhos e raros sobre temas interditos, li todos os escritos nas línguas que domino, contudo esses são poucos em comparação aos escritos em idiomas que desconheço. Na maioria, acredito, são em árabe; e o compêndio de demoníaca inspiração que acarretou a tragédia – o livro que levava no bolso ao abandonar o mundo – estava escrito em caracteres que jamais vi em parte alguma. Warren jamais se dispôs a me dizer o que havia naquele livro. Quanto à natureza de nossos estudos… precisarei repetir ainda uma vez que já não conservo deles plena compreensão? Parece-me até misericordioso que seja assim, pois eram estudos terríveis, que eu levava a cabo mais por relutante fascinação que por inclinação verdadeira. Warren sempre me dominou e às vezes eu o temia. Lembro-me como estremeci ante sua expressão facial na noite anterior ao fato hediondo, enquanto ele falava sem cessar de sua teoria – por que certos cadáveres nunca se decompõem mas permanecem Íntegros em suas tumbas por mil anos. No entanto, já não o temo mais, pois suspeito que ele conheceu horrores além do meu alcance. Agora temo por ele.
Mais uma vez repito: não tenho nenhuma lembrança clara de nosso intuito naquela noite. Decerto teria muito a ver com o livro que Warren levava consigo – aquele livro antigo, num alfabeto indecifrável e que lhe chegara da índia um mês antes – mas juro que não sei o que esperávamos encontrar. Vossa testemunha declara que nos viu às onze e meia na estrada de Gainsville, seguindo na direção do Pântano do Cipreste Grande. É provável que isso seja verdade, mas não me lembro com nitidez. A imagem cauterizada em minha alma é apenas de uma cena, e deve ter sido bem depois da meia noite, pois via-se uma pálida lua crescente no céu vaporoso.
O lugar era um cemitério antigo. Tão antigo que eu me sobressaltava ante os inúmeros indícios de anos imemoriais. Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e curiosas ervas rasteiras, envolvido por um vago fedorque minha fantasia ociosa associava absurdamente a pedras putrefatas. Por toda a parte havia sinais de abandono e decrepitude e eu parecia perseguido pela idéia de Warren: nós éramos as primeiras criaturas vivas a invadir um silêncio letal de séculos. Sobre a borda do vale, uma lua crescente, lânguida e enlanguescente, espreitava através dos vapores repulsivos que pareciam emanar de catacumbas ignotas, e seus raios débeis e bruxuleantes faziam-me discernir um aglomerado repelente de lápides,  urnas, cenotáfios e mausoléus, todos esboroantes, cobertos de musgo e manchados de umidade, e em parte ocultos pela luxuriância obscena da vegetação insalubre.
A primeira impressão vivida que tenho de minha própria presença nessa necrópole terrível refere-se ao ato de deter-me com Warren diante de um certo sepulcro semi obliterado e de arrojar em seu interior certos fardos que, aparentemente estiváramos carregando. Notei então que trazia comigo uma lanterna elétrica e duas pás, ao passo que meu companheiro portava uma lanterna semelhante e um aparelho telefônico portátil. Não se disse qualquer palavra, pois o local e a missão pareciam-nos conhecidos. E sem delongas tomamos das pás e começamos a afastar as ervas, agrama e a terra da cova rasa e arcaica. Após expormos toda a sua superfície, que consistia em três imensas lages de granito, recuamos alguns passos para examinar o ossuário. Warren parecia estar fazendo alguns cálculos mentais. Depois voltou ao sepulcro e, usando a pá como alavanca, tentou erguer a laje que ficava mais próxima de uma ruína de pedra e que pode ter sido outrora um monumento. Não conseguindo seu intento, fez un gesto para que eu o auxiliasse. Por fim, nossos esforços combinados fizeram com que a pedra se soltasse. Levantamo-la e a arredamos do lugar.
Com a remoção da laje, ficou à vista uma abertura negra, da qual irrompeu um efluxo de gases miasmáticos, tão nauseantes que saltamos para trás, tomados de horror. Após um intervalo, entretanto, aproximamo-nos novamente da cova e achamos as exalações menos intoleráveis. Nossas lanternas revelaram o alto de um lance de degraus, dos quais gotejava um licor repugnante e que eram delimitados por paredes úmidas recobertas de bolor. E agora, pela primeira vez minha memória registra emissão de palavras. Warran falava-me longamente, em sua cálida voz de tenor, uma voz singularmente incólume ao ambiente lúgubre.
“Peço perdão por pedir-te que permaneças na superfície”, disse ele, “mas seria criminoso permitir que alguém de nervos tão frágeis descesse até lá. Não podes imaginar, mesmo pelo que leste e pelo que eu te disse, as coisas que terei de ler e de fazer. Trata-se de um trabalho diabólico, Carter , e duvido que algum homem que não tenha a sensibilidade empedernida pudesse ver aquelas coisas e voltar vivo e são. Não é desejo ofender-te e Deus sabe o quanto eu gostaria de levar-te comigo. Mas de certa forma a responsabilidade é minha e eu não seria capaz de arrastar um feixe de nervos como tu à morte ou à loucura quase certa. Digo-te, não podes imaginar o que seja realmente a coisa! Mas prometomanter-te informadode cada passo meu pelo telefone – vês que disponho de fio suficiente para chegar ao centro da terra e voltar!”
Ainda ressoam em minha memória essas palavras, pronunciadas tranqüilamente. E ainda me recordo de meus protestos. Eu parecia desesperadamente ansioso por acompanhar meu amigo para aquelas profundezas sepulcrais, mas ele se mostrava de uma obtinação inflexível. A certo momento, ameaçou abandonar a expedição caso eu insistisse. A ameaça tinha peso, pois só ele possuía a chave do que procurávamos. De tudo isso ainda me lembro, muito embora já não saiba que espécie de coisa buscávamos. Depois de haver obtido minha relutante aquiescência a seu plano, Warren pegou o rolo de fio e ajustou seus instrumentos. A um gesto seu, peguei um destes e sentei-me numa lápide vetusta e descolorida, junto da abertura recém-exposta. Depois ele apertou-me a mão, sobraçou o rolo de fio e desapareceu naquele indescritível ossuário.
Durante um minuto ainda percebi o brilho da lanterna e escutei o roçagar do fio, enquanto Warren o estendia pelo chão; mas o brilho da luz sumiu repentinamente, como se ele houvesse dobrado uma esquina na escada de pedra e quase ao mesmo tempo o som cessou igualmente. Eu estava só, porém ligado às profundezas desconhecidas por aqueles cordéis mágicos cuja superfície isolada verdejava sobre os raios esforçados do exangue quarto-crescente.
A cada momento eu consultava o relógio, à luz da lanterna elétrica e, tomado de ansiedade febril, procurava ouvir alguma coisa no receptor do telefone. Entretanto, durante mais de um quarto de hora nada ouvi. Então o instrumento emitiu um estalido e eu chamei meu amigo com voz tensa. Por apreensivo que me sentisse, eu não estava preparado entretanto para as palavras que subiram daquela cova hedionda, em tons mais alarmados e hesitantes do que eu já havia escutado de Harley Warren. Ele, que se despedira de mim com tamanha calma havia pouco, agora me chamava lá de baixo num sussurro titubeante, mais pressago que um grito sonoríssimo:
“Meu Deus! Se pudesse ver o que estou vendo!”
Não pude Responder. Mudo, só fiz esperar. Ouvi novamente as palavras agitadas:
Carter, é terrível… monstruoso… inacreditável!”
Dessa vez a voz não me faltou e despejei no aparelho um jorro de indagações excitadas. Aterrorizado, não cessava de repetir:”Warren, o que foi? O que foi?”
Mais uma vez escutei a voz de meu amigo, ainda repassada de medo e agora aparentemente impregnada de desespero:
“Não posso dizer-te, Carter! É demasiado incrível… não ouso contar… nenhum homem poderia saber e sobreviver… Santo Deus! Jamais sonhei com isso!”
Voltou o silêncio, apenas quebrado pela torrente de perguntas sobressaltadas que eu fazia. Ouvi então novamente a voz de Warren, num tom de delirante consternação:
“Carter! Pelo amor de Deus, repõe a Laje no lugar e sai disso se puderes! Deixa tudo mais e corre… é tua última oportunidade! Faz o que eu digo e não peça explicações!”
Eu escutava, mas só conseguia repetir minhas perguntas frenéticas. Em meu redor estavam as tumbas, a escuridão e as sombras; abaixo de mim, algum perigo que sobrepujava o alcance da imaginação humana. Mas meu amigo corria mais perigo que eu e sobre meu medo passou um vago ressentimento de que ele me julgasse capaz de abandoná-lo em tal situação. Novos estalidos e após uma pausa, ouvi o grito angustiado de Carter:
“Te manda! Pelo amor de Deus, põe a laje no lugar e te manda, Carter!”
Alguma coisa na gíria juvenil de meu companheiro, evidentemente transtornado, liberou minhas faculdades. Formei e gritei uma resolução, “Warren, agüenta! Vou descer!” No entanto, diante dessa proposta o tom de meu interlocutor transformou-se num grito de completo desespero:
“Não! Não compreendes! É tarde demais… e por minha própria culpa. Põe a laje no lugar e corre… não há mais nada que tu ou outra pessoa possa fazer!”
Seu tom de voz mudou novamente, adquirindo dessa vez mais suavidade, como que traduzindo resignação sem esperança. Contudo, para mim ele permanecia tenso de ansiedade.
“Depressa… antes que seja tarde demais!”
Tentei não lhe dar ouvidos. Tentei quebrar a paralisia que me detinha e cumprir minhs promessa de descer para ajudá-lo. Seu próximo murmúrio, todavia, ainda me encontrou inerte, preso de puro horror.
“Carter… corre! Não adianta… tens de ir… antes um que dois… a laje…”
Uma pausa, mais estalidos, e depois a voz débil de Warren:
“Quase acabado agora… não dificultes ainda mais… cobre esses degraus malditos e foge para salvar a vida… estás perdendo tempo… adeus, Carter… não voltarei a ver-te.”
Nesse ponto, o murmúrio de Warren converteu-se em grito, um grito que aos poucos se transmudou em uivo, carregado de todo o horror das eras…
“Malditas coisas infernais… legiões… meu Deus! Te manda! Te manda! TE MANDAAAAAÜ!
“Depois disso, caiu o silêncio. Ignoro por quantos éons permaneci sentado ali, estupefato. Sussurrando, murmurando, gritando, berrando naquele telefone. Vezes sem conta, no transcurso daqueles éons, sussurrei, murmurei, chamei, gritei e berrei “Warrren! Warren; Responde… estás aí?
Foi então que sobreveio o cúmulo do horror… a cois ainacreditável, inimaginável, quase impronunciável. Já disse que foi como se passassem éons depois de Warren emitir sua derradeira advertência desesperada, e que apenas meus gritos quebravam agora o silêncio horrífico. Contudo depois de algum tempo houve um novo estalido no telefone e eu apurei os ouvidos. Mais uma vez chamei: “Warren estás aí?, e como resposta ouvi aquilo que lançou essa nuvem sobre minha alma. Não tento, senhores, explicar aquilo… aquela voz… nem posso abalançar-me a descrevê-la em minúcia, uma vez que as palavras iniciais roubaram minha consciência e criaram um vazio mental que se estende ao momento em que despertei no Hospital. Direi que a voz era profunda? Cava? Gelatinosa? Remota? Sobrenatural? Inumana? Desencarnada? Que direi? Ela marcou o fim de minha experiência e é o fim de minha história. Eu a escutei, e de nada mais tomei conhecimento… escutei-a enquanto permanecia sentado, petrificado naquele cemitério desconhecido do vale, em meio às pedras carcomidas e aos túmulos em ruínas, junto à vegetação pútrida e aos vapores miasmáticos… escutei-a subindo das profundezas mais absconsas daquele maldito sepulcro aberto, enquanto assistia à dança de sombras amorfas, necrófagas, à luz mortiça de uma lua exangue.
E o que ela disse foi:
“IDIOTA, WARREN ESTÁ MORTO!”
H. P. Lovecraft
Extraído do site PDL

sábado, 11 de março de 2017

William Wilson

Que me seja permitido, no momento, chamar-me William Wilson. A página em branco, que tenho diante de mim, Não deve ser manchada com meu verdadeiro nome. Esse nome já tem sido demais objeto de desprezo, de horror e de ódio para minha família. Os ventos indignados Não têm divulgado, até nas mais longínquas regiões do globo, a sua incomparável infâmia? Oh! de todos os proscritos, o proscrito mais abandonado! ? não estás morto para sempre a este mundo, às suas honras, suas flores e aspirações douradas? ? e uma nuvem densa, lúgubre, ilimitada, não pende eternamente entre tuas esperanças o céu?
Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a lembrança dos meus últimos anos de indizível miséria e crimes imperdoáveis. Esse período recente de minha vida alcançou subitamente um auge de torpeza. da qual quero apenas determinar a origem. Os homens, em geral, tornam-se vis gradualmente. Mas, de mim, toda virtude se desprendeu num minuto, de repente, como um manto. Da perversidade relativamente comum, encontrei-me, a. passo de gigante, em enormidades maiores que as de Heliogábalo. Permitam-me contar o acaso, o acidente único que me trouxe essa maldição. A morte se aproxima e a sombra que a precede lançou uma influência suavizadora em meu coração. Passando através do sombrio vale, anseio pela simpatia ? ia dizer piedade ? de meus semelhantes. Desejaria persuadi-los de que fui, de certa maneira, o escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controle humano. Desejaria que descobrissem para mim, nos detalhes que lhes vou dar, algum pequeno oásis de fatalidade, num deserto de erros. Queria que concordassem ? se é que não podem recusar-se a concordar que, embora este mundo tenha conhecido grandes tentações, jamais um homem foi tentado assim e certamente jamais sucumbiu desta maneira. Será por isso que não conheceu os mesmos sofrimentos? Na verdade não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo vítima do horror e do mistério das mais estranhas de todas as visões sublunares?
Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, por um temperamento imaginativo e facilmente impressionável; e minha primeira infância provou que eu herdara em cheio o caráter de minha família. Avançando em idade, esse caráter desenvolveu-se com mais força, tornando-se, por várias razões, uma causa de séria inquietação para meus amigos e de prejuízo positivo para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, dado aos mais selvagens caprichos, fui presa de paixões indomáveis. Meus pais, que eram de espírito fraco, e atormentados pelos defeitos constitutivos da mesma natureza, pouco podiam fazer para deter as tendências más que me caracterizavam. Fizeram algumas tentativas fracas, mal dirigidas, que fracassaram completamente e que para mim trouxeram um triunfo completo. A partir desse momento, minha voz foi uma lei doméstica e, numa idade em que poucas crianças deixam de obedecer à disciplina, fui abandonado ao meu livre arbítrio e tornei-me senhor de todas as minhas ações exceto de nome.
Minhas primeiras impressões da vida de estudante ligam-se a uma vasta e extravagante casa do estilo elisabetano, numa aldeia sombria da Inglaterra, decorada de numerosas árvores gigantescas e nodosas e da qual todas as casas eram excessivamente antigas. Parecia, na verdade, um lugar de sonho, essa velha cidade venerável, bem própria para encantar o espírito. Neste momento, mesmo, sinto na imaginação o estremecimento do frescor de suas avenidas profundamente sombreadas, respiro as emanações de seus mil bosques e tremo ainda com uma indefinível volúpia à nota profunda e surda do sino, rompendo, a cada hora, com seu rugir súbito e moroso, a quietude da atmosfera sombria na qual se enterrava e adormecia o campanário gótico todo denteado.
Encontro talvez tanto prazer quanto me é possível experimentar ainda, demorando sobre essas minuciosas recordações da escola e de seus sonhos. Mergulhado como me encontro na desgraça ? infelicidade, ai de mim! por demais real ?, espero que me perdoem procurar um alívio, bem leve e bem curto, nesses detalhes pueris e divagantes. Aliás, embora absolutamente vulgares e risíveis em si mesmos, esses acontecimentos tomam, em minha imaginação, uma importância circunstancial, devido à sua íntima relação com os lugares e a época onde agora distingo as primeiras advertências ambíguas do destino, que desde então me envolveu tão profundamente em sua sombra. Deixem-me pois recordar.
A casa, como disse, era velha e irregular, os terrenos vastos e um alto e sólido muro de tijolos, coroado por uma camada de cimento e de vidro quebrado, os rodeava. Essa fortificação, digna de uma prisão, formava o limite de nosso domínio. Nossos olhares não iam além senão três vezes por semana ? uma vez cada sábado à tarde, quando, acompanhados por dois professores, tínhamos permissão para dar passeios curtos em comum, através do campo, nas imediações e duas vezes ao domingo, quando íamos, com a regularidade de tropas em parada, assistir aos ofícios da manhã e da tarde, no único templo da aldeia. O diretor de nossa escola era o pastor dessa igreja. Com que profundo sentimento de admiração e de perplexidade eu costumava contemplá-lo, de nosso banco afastado, na tribuna, quando subia para o púlpito, com um passo solene e lento! Essa personagem venerável, de rosto tão modesto e benigno, de roupa tão bem escovada e caindo de maneira impecavelmente eclesiástica, de peruca tão minuciosamente empoada, rígida e vasta, seria o mesmo homem que havia pouco, com um rosto irascível e a roupa manchada de rapé, fazia executar, férula em mão, as leis draconianas da escola? Oh! Gigantesco paradoxo cuja monstruosidade exclui toda solução!
Num ângulo do muro maciço, uma severa porta, ainda mais maciça, solidamente fechada, guarnecida de ferrolhos e encimada por espigões de ferro denticulados. Como eram profundos os sentimentos de terror que inspirava! Nunca se abria senão para as três saídas e entradas periódicas de que já falei; então, em cada rangido de seus gonzos potentes, encontrávamos uma plenitude de mistério ? todo um mundo de observações solenes ou de meditações ainda mais solenes.
O vasto recinto era de forma irregular e dividido em várias partes, das quais três ou quatro das maiores constituíam o pátio de recreio. Era aplainado e recoberto de um saibro fino e duro. Lembro-me bem de que não continha árvores, nem bancos, nada de semelhante. Naturalmente ficava situado atrás da casa. Diante da fachada, estendia-se um pequeno terraço plantado de buxos e outros arbustos, mas não atravessávamos esse recanto sagrado senão em raras ocasiões, por exemplo, o dia da chegada à escola, o dia da partida definitiva, ou então quando um parente ou amigo nos mandava chamar, e seguíamos alegremente para a casa paterna, nas férias de Natal, ou de verão.
Mas a casa! ? que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro palácio encantado! Realmente, eram infindáveis os seus desvios, as suas incompreensíveis subdivisões. Era difícil dizer com certeza, a determinado momento, se nos encontrávamos no primeiro ou no segundo pavimento. De uma peça a outra, tinha-se sempre a certeza de encontrar dois ou três degraus a subir ou descer. Além disso, as subdivisões laterais eram inúmeras, inconcebíveis, giravam de tal maneira umas sobre as outras, que nossas idéias mais exatas, acerca do conjunto do edifício, não eram muito diferentes daquelas através das quais considerávamos o infinito. Durante os cinco anos de residência ali, nunca fui capaz de determinar, com precisão, em que localidade longínqua ficava situado o pequeno dormitório que me fora designado em comum, com mais dezoito ou vinte outros escolares.
A sala de estudo era a mais vasta da escola e ? eu não podia deixar de pensar ? até mesmo do mundo inteiro: longuíssima, muito estreita e lugubremente baixa, com janelas em ogiva e teto de carvalho. Num canto afastado, de onde emanava o terror, havia um recinto quadrado, de oito a dez pés, representando o sanctum “durante horas” do nosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby. Era uma sólida estrutura, de porta maciça, e, a abri-la na ausência do Dominie, teríamos preferido morrer, da peine forte et dure. Em dois outros ângulos, dois recintos análogos, muito menos reverenciados, sem dúvida, mas ainda assim de um terror bastante considerável. Um era a cátedra do mestre de humanidades e o outro a do professor de inglês e matemática. Espalhados através da sala, inúmeros bancos e cadeiras, terrivelmente carregados de livros maculados pelos dedos e cruzando-se numa irregularidade sem fim ? negros, antigos, devastados pelo tempo, tão marcados de letras iniciais, nomes inteiros, figuras grotescas e outras inúmeras obras-primas da faca, que haviam perdido o pouco da forma original que lhes fora designada, em dias muito antigos. Numa extremidade da sala, encontrava-se um enorme balde cheio de água e na outra um relógio de prodigiosa dimensão.
Encerrado entre os muros maciços dessa escola venerável, passei contudo, sem tédio ou repulsa, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes para o ocupar e divertir e a monotonia, aparentemente lúgubre, da escola, era repleta de excitações mais intensas do que todas as que minha juventude, mais amadurecida, exigiu à volúpia, ou minha virilidade, ao crime. Entretanto, julgo dever dizer que meu primeiro desenvolvimento intelectual foi, em grande parte, pouco comum e até mesmo outré. Em geral, os acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade, chegada à idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza, débil e irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos. Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas, tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas.
E contudo, de fato ? do ponto de vista comum do mundo ¯, como havia la tão pouca coisa para relembrar! O despertar, de manhã, a ordem para deitar-se, as lições a aprender, os recitativos, as meias férias periódicas e os passeios, o pátio de recreio, com suas disputas, seus passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma magia psíquica desaparecida, continha em si um desvario de sensação, um mundo rico de incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais apaixonadas e embriagadoras. Oh! Le bon temps que ce siècle de fer!
Na realidade, minha natureza ardente, entusiasta, imperiosa fez de mim, dentro em pouco e entre meus camaradas, um caráter marcado, e pouco a pouco, naturalmente, deram-me um ascendente sobre todos os que não eram mais velhos do que eu ? sobre todos, exceto um. Era um aluno que, sem qualquer parentesco comigo, tinha o mesmo meu nome de batismo, o mesmo nome de família ? circunstância pouco notável, em si ? porque meu nome, malgrado a nobreza de minha origem, era um desses nomes vulgares que parecem ter sido, desde tempos imemoriais, por direito de prescrição, a propriedade comum da multidão. Nesta narrativa dei a mim mesmo o nome de William Wilson, fictício, porém não muito distante do verdadeiro. Meu homônimo, somente, entre os que, segundo a fraseologia da escola, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos, nos jogos e nas discussões do recreio, recusar uma crença cega em minhas assertivas e uma submissão completa à minha vontade ? em suma contrariar minha ditadura, em todos os casos possíveis. Se jamais existiu sobre a terra um despotismo supremo e sem reservas, é bem o despotismo de um menino de gênio sobre as almas menos enérgicas de seus camaradas.
A rebeldia de Wilson era para mim origem do maior constrangimento, tanto mais que, apesar das bravatas com que eu julgava dever tratá-lo publicamente, a ele e às suas pretensões, sentia, no íntimo, que Wilson me intimidava e não podia deixar de considerar a equanimidade que mantinha tão facilmente diante de mim, como a prova de uma verdadeira superioridade ? pois havia de minha parte um esforço perpétuo para não ser dominado. Contudo, essa superioridade, ou antes igualdade, não era verdadeiramente conhecida senão por mim; nossos camaradas, por uma inexplicável cegueira, nem mesmo pareciam desconfiar disso. E, de fato, sua rivalidade, sua resistência e particularmente sua impertinente e irritadiça intervenção em todos os meus desígnios não eram tão manifestas, e antes, confidenciais. Ele parecia igualmente desprovido da ambição que me levava a dominar e da energia apaixonada que me dava os meios para isso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade, Wilson era dirigido unicamente por um desejo caprichoso de opor-se a mim, de me espantar, ou mortificar; se bem que houvesse casos em que eu não podia deixar de notar, com um sentimento confuso, de surpresa, humilhação e cólera, que ele punha em seus ultrajes, suas impertinências e contradições certos ares de afetuosidade, dos mais intempestivos e, sem dúvida, mais desagradáveis do mundo. Eu não podia compreender uma conduta tão estranha senão supondo-a o resultado de uma suficiência perfeita, permitindo-se o tom vulgar da condescendência e da proteção.
Talvez fosse por esse último traço, na conduta de Wilson ? acrescido da nossa homonímia e o fato puramente acidental de nossa entrada simultânea na escola ?, que todos. entre nossos condiscípulos das classes superiores, acreditavam que éramos irmãos. Habitualmente, esses estudantes não se informam com muita exatidão quanto aos assuntos dos mais jovens. Já disse antes, ou deveria tê-lo dito, que Wilson não era, nem em grau afastado, parente de minha família. Mas decerto, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola do Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de janeiro de 1813 ? coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do meu nascimento.
Pode parecer estranho que, malgrado a contínua ansiedade que me causava a rivalidade de Wilson e seu insuportável espírito de contradição, eu não era levado a odiá-lo completamente. Sem dúvida, quase todos os dias tínhamos uma briga, na qual, concedendo-me publicamente os louros da vitória, ele conseguia, de certa maneira, fazer-me sentir que eu não os merecera. Contudo, um sentimento de orgulho, de minha parte, e uma verdadeira dignidade, da dele, nos mantinham sempre em termos de estrita cortesia, apesar de haver muitos pontos de forte identidade no nosso caráter, que faziam despertar em mim o desejo, reprimido talvez pela nossa posição, de transformar aquilo em amizade. Na verdade, é difícil definir, ou mesmo descrever meus verdadeiros sentimentos para com ele: formavam um amálgama extravagante e heterogêneo ? uma animosidade petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de temor e uma imensa e inquieta curiosidade. É supérfluo acrescentar, para o moralista, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis camaradas.
Foram decerto a anomalia e ambigüidade de nossas relações que jogaram todos os meus ataques contra ele e, francos ou dissimulados, eram numerosos ? moldados de ironia ou de troça (a zombaria não causa também excelentes feridas?) em vez de uma hostilidade mais séria e mais determinada. Porém meus esforços, neste ponto, não obtinham regularmente um triunfo perfeito, mesmo quando os planos eram mais engenhosamente maquinados. É que o meu homônimo tinha em seu caráter muito dessa austeridade plena de reserva e de calma que, mesmo deliciando-se com a pungência de suas próprias zombarias, nunca mostra o calcanhar-de-aquiles e foge absolutamente ao ridículo. Não podia assim encontrar nele senão um ponto vulnerável: era constituído por um detalhe físico que, vindo talvez de uma enfermidade de seu organismo, teria sido poupado por algum outro antagonista menos encarniçado do que eu: meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia de jamais erguer a voz acima de um sussurro muito baixo. E eu não deixava de tirar, dessa imperfeição, toda a pobre vantagem que estava em meu poder.
Várias eram as represálias de Wilson; tinha, particularmente, esse gênero de malícia que me perturbava de maneira intolerável. Como tivera, no início, a sagacidade de descobrir que uma coisa tão insignificante podia mortificar-me, eis uma questão que jamais pude resolver; mas, assim que a descobriu, habitualmente me atormentava com isso. Sempre sentira aversão por meu infeliz nome de família tão deselegante, e por meu prenome tão vulgar ou mesmo absolutamente plebeu. Essas sílabas eram um veneno para meus ouvidos e quando, no dia de minha chegada, apresentou-se na escola um segundo William Wilson, odiei-o pela fato de ter esse nome e por ser também o de um estranho ? um estranho que seria a causa de sua dupla repetição, que estaria permanentemente em minha presença e cujas atividades, na rotina da vida do colégio, seriam muitas vezes e inevitavelmente confundidas com as minhas, devido a essa detestável coincidência.
O sentimento de irritação criado por esse acidente tornou-se mais vivo, a cada circunstância que tendia a focalizar toda a semelhança moral entre meu rival e mim. Não havia notado ainda senão o fato extraordinário de sermos da mesma idade; mas via agora que éramos da mesma altura e havia uma semelhança singular em nossa fisionomia e nossas feições. Exasperava-me igualmente o rumor que corria sobre nosso parentesco e a que geralmente se dava crédito, nas classes superiores. Numa palavra, nada poderia causar-me preocupação mais séria (embora eu ocultasse com o maior cuidado todo sintoma dessa perturbação) do que uma alusão qualquer à semelhança entre nós, em relação ao espírito, à pessoa ou ao nascimento. Mas, na verdade, não tinha razão alguma para acreditar que essa semelhança (excetuando o fato do parentesco e de tudo o que o próprio Wilson sabia ver) tivesse jamais sido assunto de comentários ou mesmo notada por nossos camaradas de classe. Que ele a observasse em todos os sentidos e com tanta atenção quanto eu próprio, era evidente, mas que tivesse podido descobrir em tais circunstâncias uma mina tão rica de contrariedades, não o posso atribuir, como já disse, senão à sua penetração mais do que comum.
Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo ? gestos e palavras ? e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era coisa fácil de copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe havia escapado. Naturalmente, não tentava os tons elevados, mas a clave era idêntica e sua voz, apesar de falar baixo, transformou-se em perfeito eco da minha.
A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chamá-lo propriamente uma caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer. Não me restava senão um consolo: é que a imitação, segundo me parecia, era notada apenas por mim e que eu tinha simplesmente de suportar os sorrisos misteriosos e estranhamente sarcásticos do meu homônimo. Satisfeito de haver produzido em meu coração o efeito desejado, parecia expandir-se em segredo sobre a ferida que me infligira e mostrar um desdém singular pelos aplausos públicos que os sucessos de sua engenhosidade lhe teriam facilmente conquistado. Como era possível que nossos camaradas não adivinhassem o seu desígnio, não vissem sua realização e não partilhassem de sua alegria zombeteira? Foi isso, durante muitos meses de inquietação, um mistério insolúvel para mim. Talvez a gradação de sua cópia não fosse logo percebível, ou antes, eu devia minha segurança ao ar de maestria do copista, que desdenhava a letra ? coisa que os espíritos obtusos logo notam numa pintura ? e não dava senão o perfeito espírito do original, para minha maior admiração e pesar.
Já falei, várias vezes, do desagradável ar de proteção que assumira para comigo e da sua freqüente e oficiosa intervenção em minha vontade. Essa intervenção tomava muitas vezes a forma desagradável de um conselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado. Eu o recebia com uma repugnância que crescia com os anos. Contudo, nossa época já longínqua, quero fazer-lhe a justiça estrita de reconhecer que não me lembro de uma só vez em que as sugestões de meu rival tivessem pactuado com os erros e loucuras tão comuns em sua idade, geralmente destituída de maturidade e experiência; que o seu senso moral, ou seu talento e sua prudência mundana, era muito mais fino que o meu, e hoje eu seria um homem melhor se não tivesse sempre recusado os conselhos daqueles sussurros significativos que me causavam, então, tão-somente ódio cordial e amargo desprezo.
Por isso tornei-me extremamente rebelde à sua odiosa vigilância e detestava cada vez mais abertamente o que considerava sua intolerável arrogância. Já disse que, nos primeiros anos de nossa camaradagem, meus sentimentos para com ele poderiam facilmente ter-se transformado em amizade, mas, durante os últimos meses de minha permanência na escola, embora sua habitual intromissão tivesse diminuído bastante, meus sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham-se inclinado para o verdadeiro ódio. Certa ocasião, ele o percebeu, presumo, e desde então me evitou ou fingiu evitar-me.
Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa discussão violenta que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e falava e agia com um desembaraço bem diferente à sua natureza, que descobri, ou imaginei descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu aspecto em geral, algo que a princípio me fez estremecer e depois me interessou profundamente, trazendo-me ao espírito visões obscuras de minha primeira infância lembranças estranhas, confusas, precipitadas, de um tempo no qual minha memória não nascera ainda. Não poderia definir melhor a sensação que me dominou, senão dizendo que me era difícil libertar-me da idéia de já haver conhecido a pessoa que se encontrava diante de mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do passado, mesmo que infinitamente remoto. Contudo, essa sensação esvaiu-se tão rapidamente como veio; e não a menciono aqui senão para assinalar o dia do último encontro que tive com o meu singular homônimo.
Com suas inumeráveis subdivisões, a velha e vasta casa tinha vários e amplos aposentos, que se comunicavam entre si e serviam de dormitório à maioria dos alunos. Havia contudo (como seria inevitável, num edifício tão impropriamente planejado) uma porção de cantos e recantos fragmentos e aberturas da construção, que a engenhosidade do Doutor Bransby transformara também em dormitórios. Eram porém simples compartimentos, que só poderiam acomodar uma pessoa. Um desses pequenos quartos era ocupado por Wilson.
Uma noite, ao fim do meu quinto ano na escola e imediatamente após a discussão de que falei, aproveitando um momento em que todos dormiam, levantei-me e, com uma lâmpada na mão, dirigi-me, através de um labirinto de corredores estreitos, do meu ao quarto do meu rival. Havia muito planejara pregar-lhe uma peça de mau gosto, mas, até então, sempre fracassara. Tive pois a idéia de pôr o meu plano em prática e resolvi fazê-lo sentir toda a força da maldade de que estava possuído. Cheguei à porta de seu cubículo e entrei sem fazer ruído, deixando à porta a lâmpada com um abajur. Avancei um passo e escutei o som de sua respiração tranqüila. Convencido de que dormia profundamente, voltei à porta, peguei a lâmpada e aproximei-me novamente da cama. Como os cortinados estavam cerrados, abri-os de leve e lentamente, para a execução de meu plano, mas uma luz viva caiu em cheio sobre o adormecido e ao mesmo tempo meus olhos se detiveram sobre sua fisionomia. Olhei; e um entorpecimento, uma enregelante sensação penetraram instantaneamente todo o meu ser. Meu coração palpitou, os joelhos vacilaram, toda a minha alma foi tomada de um horror intolerável e inexplicável. Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Seriam… seriam mesmo as feições de William Wilson? Vi, sem dúvida, que eram os meus traços, mas tremia como que tomado de um acesso de febre, imaginando que não o eram. Que haveria pois neles para me confundir a tal ponto? Eu o contemplava e meu cérebro girava em torno de milhares de pensamentos incoerentes. Ele não me aparecia assim ? seguramente não parecia tal ? nas horas ativas de sua vida acordado. O mesmo nome! Os mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia! E, ainda, essa odiosa e inexplicável imitação de minhas maneiras, andar, voz e costume! Estaria, na verdade, nos limites da possibilidade humana que aquilo que eu via agora fosse o simples resultado desse hábito de imitação sarcástica? Tomado de horror, estremecendo, apaguei a lâmpada, saí silenciosamente do quarto e deixei imediatamente o recinto da velha escola, para nunca mais voltar.
Após um lapso de alguns meses vividos em casa de meus pais, em ociosidade absoluta, fui mandado para o colégio de Eton. Esse breve intervalo fora suficiente para enfraquecer em mim a recordação dos acontecimentos na escola Bransby, ou pelo menos operar uma mudança notável na natureza dos sentimentos que essas lembranças me causavam. A realidade, o lado trágico do drama, não existiu mais. Encontrava agora alguns motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos e raramente me lembrava da aventura sem admirar-me de quão longe pode ir a credulidade humana, e sem sorrir da prodigiosa força de imaginação que havia herdado de minha família. E a vida que eu levava em Eton não era de molde a diminuir essa espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em que mergulhei imediatamente e sem reflexão tudo varreu, exceto a lembrança de minhas horas passadas, absorvendo imediatamente todas as impressões sólidas e sérias, não deixando em minha lembrança senão as leviandades de minha existência anterior.
Não tenho, contudo, a intenção de descrever aqui a trajetória de meus infames desregramentos ? desregramentos que desafiavam as leis e iludiam a vigilância. Três anos de loucuras, gastos sem proveito, só poderiam ter-me dado hábitos de vício, enraizados, e haviam aumentado, de maneira quase anormal, meu desenvolvimento físico. Um dia, após uma semana inteira de dissipações embrutecedoras, convidei um grupo de estudantes, dos mais dissolutos, para uma orgia secreta em meu quarto.
Reunimo-nos a uma hora avançada da noite, porque a nossa orgia devia prolongar-se religiosamente até a manhã. O vinho corria livremente e outras seduções, mais perigosas, talvez, não haviam sido negligenciadas, tanto que quando o alvorecer empalidecia o céu, no oriente, nosso delírio e nossas extravagâncias tinham atingido o auge. Furiosamente exaltado pelas cartas e pela bebida, insistia em fazer um brinde estranhamente indecente, quando minha atenção foi subitamente distraída por uma porta que se abria violentamente e pela voz precipitada de um criado. Disse que uma pessoa, que parecia ter muita pressa, pedia para falar comigo no vestíbulo.
Loucamente excitado pelo vinho, essa interrupção causou-me mais prazer do que surpresa. Precipitei-me, cambaleando, e, após alguns passos, encontrei-me no vestíbulo da casa. Nessa sala, baixa e estreita, não havia nenhuma lâmpada e a única luz que ali entrava era a do alvorecer, muito fraca, que se infiltrava através da janela semicircular. Pisando na soleira, distingui um rapaz pouco mais ou menos da minha estatura, vestindo um roupão de casimira branca, talhado à moda do dia, como o que eu usava naquele momento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso; mas os traços do rosto, não os pude distinguir. Mal entrei, ele se precipitou para mim e, segurando-me o braço com um gesto imperativo de impaciência, murmurou em meu ouvido as palavras:
? William Wilson!
Num segundo, tornei-me absolutamente sóbrio.
Havia na maneira do estranho, no tremor nervoso de seu dedo, que erguera entre meus olhos e a luz, qualquer coisa que me causou um espanto completo: mas não era isso o que me emocionara de maneira tão violenta, e sim a importância, a solenidade da admoestação contida na palavra singular, baixa, sibilante, e, acima de tudo, o caráter, o tom, a clave dessas poucas sílabas, simples, familiares e, contudo, misteriosamente sussurradas, que vieram, com mil recordações acumuladas dos dias passados, abater-se em minha alma como uma descarga elétrica. Antes que eu pudesse recobrar os sentidos, ele havia desaparecido.
Embora o fato produzisse sem dúvida um efeito muito vivo sobre minha imaginação desregrada, esse efeito, tão vivo, contudo, se foi em breve esvaindo. Na verdade, durante várias semanas, vivi entregue a investigações mais sérias, ou envolvido numa nuvem de mórbida meditação. Não tentava ocultar a mim mesmo a identidade da singular criatura que se imiscuía de maneira tão obstinada em minha vida e me fatigava com seus conselhos oficiosos. Porém, quem era? Quem era esse Wilson? E de onde vinha? Qual o seu objetivo? Sobre nenhum desses pontos consegui obter resposta satisfatória ? e constatei somente, em relação a ele, que um acidente súbito, em sua família, o fizera deixar a escola do Doutor Bransby na tarde do dia em que eu fugira. Mas, depois de algum tempo, deixei de pensar nisso e minha atenção foi inteiramente absorvida pela partida, projetada, para Oxford. Ali, em breve ? a vaidade pródiga de meus pais permitindo-me levar um alto padrão e entregar-me à vontade ao luxo, já tão do meu gosto ?, vim a rivalizar em prodigalidade com os mais orgulhosos herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha. Estimulado ao vício por semelhantes meios, minha natureza explodiu em breve com um duplo ardor e na louca embriaguez de minhas devassidões calquei aos pés os vulgares entraves da decência. Mas seria absurdo demorar aqui em detalhes de minhas loucuras. Basta dizer que ultrapassei Herodes em dissipações e que, dando um nome a uma multidão de novos desvarios, acrescentei um copioso apêndice ao longo catálogo dos vícios que reinavam então na universidade mais dissoluta da Europa.
Custa a acreditar que eu tivesse decaído a tal ponto, de minha posição de nobreza, procurando familiarizar-me com os mais vis artifícios do jogador de profissão e me tornasse um adepto dessa ciência desprezível, que a praticasse habilmente com o pretexto de aumentar meu rendimento já enorme, à custa de companheiros cujo espírito era mais fraco. Mas foi o que aconteceu. E a própria enormidade desse atentado contra os sentimentos de dignidade e honra era, evidentemente, a principal, se não a única razão da minha impunidade. Quem, pois, entre meus mais devassos camaradas, não teria contestado ao mais evidente testemunho de seus próprios sentidos, a desconfiar de semelhante conduta da parte do alegre, do franco, generoso William Wilson ? o mais nobre, o mais liberal dos companheiros de Oxford ?, aquele cujas loucuras, diziam meus parasitas, eram apenas as loucuras de uma mocidade e de uma imaginação sem freio, cujos erros não eram senão inimitáveis caprichos, e os vícios mais negros, uma descuidada e soberba extravagância?
Havia dois anos que eu vivia dessa maneira, quando chegou à universidade um jovem de nobreza recente, um parvenu, chamado Glendinning ? rico, diziam, como Herodes Ático e cuja riqueza fora também facilmente adquirida. Descobri bem depressa que era de inteligência fraca e, naturalmente, marquei-o como possível vítima de meus talentos. Convidava-o freqüentemente a jogar e deixava-o ganhar somas consideráveis, a fim de prendê-lo mais eficazmente na armadilha. Finalmente, com o meu plano bem estabelecido (procurei-o na intenção inabalável de que esse encontro seria decisivo), no apartamento de um dos nossos camaradas, Preston, íntimo igualmente de ambos, porém, que ? faço-lhe essa justiça ? não tinha a menor desconfiança quanto ao meu desígnio. A fim de melhor colorir o acontecimento, tive o cuidado de convidar um grupo de oito ou dez pessoas, tendo o mais rigoroso cuidado de fazer com que o aparecimento das cartas parecesse inteiramente acidental e não se fizesse senão sob proposta daquele a quem eu queria lograr. Para resumir tão vil passagem, digo que não negligenciei nenhuma das infames astúcias praticadas da maneira mais banal em tais ocasiões e é de admirar que ainda existam pessoas bastante ingênuas a ponto de caírem como suas vítimas.
Prolongamos muito a nossa vigília, e já era tarde da noite, quando, afinal, consegui fazer de Glendinning meu único adversário. O jogo era o meu favorito: o écarté. Os outros presentes, interessados pelas proporções de nosso jogo, tinham deixado suas cartas e se reuniam em torno de nós. como espectadores. O nosso parvenu, que, durante a primeira parte da noite, eu induzira a beber fartamente, embaralhava, dava as cartas agora de maneira nervosa, estranha, na qual, pensava eu, a embriaguez influía de certo modo, porém não explicava inteiramente. Em muito pouco tempo já se tornara meu devedor de uma grande soma, quando, depois de beber um grande copo de vinho do Porto, fez justamente o que eu havia previsto friamente: propôs que dobrássemos a nossa parada, já absurdamente elevada. Com uma hábil afetação de relutância, e somente depois que minhas recusas repetidas lhe haviam provocado algumas palavras ásperas, que deram ao meu consentimento um tom ofendido, acedi finalmente. O resultado foi o que devia ser: a presa caíra irremediavelmente na armadilha e em menos de uma hora quadruplicara a dívida. Havia algum tempo, seu rosto começara a perder o rubor produzido pelo vinho, mas agora eu percebia, atônito, que sua palidez era verdadeiramente terrível. Digo atônito, porque tomara sobre Glendinning informações minuciosas: davam-no como sendo imensamente rico e as somas que ele perdera até então, embora realmente vastas, não podiam ? pelo menos eu supunha ? preocupá-lo muito seriamente e ainda menos afetá-lo de maneira a tal ponto violenta. A idéia que se apresentou mais naturalmente ao meu espírito foi que ele ficara perturbado pelo vinho que bebera e, antes para salvaguardar o meu caráter aos olhos de meus camaradas do que por um motivo de desinteresse, ia insistir peremptoriamente para interromper o jogo, quando algumas palavras pronunciadas ao meu lado, entre as pessoas presentes e uma exclamação de Glendinning, demonstrando o mais completo desespero, fizeram-me compreender que eu o levara à ruína total, em condições que, tornando-o objeto da piedade de todos, deveriam tê-lo protegido, mesmo contra os maus ofícios de um demônio.
Que atitude deveria ter sido então a minha, é difícil dizer. A lastimável situação de minha vítima lançara sobre nós um ar de tristeza e constrangimento. Por alguns minutos reinou um silêncio profundo durante o qual eu sentia, malgrado meu, o rosto a formigar, sob os olhares ardentes de desprezo e censura que me eram dirigidos pelos menos endurecidos do grupo. Confessarei, mesmo, que meu coração sentiu-se instantaneamente aliviado do intolerável peso da angústia, pela súbita e extraordinária interrupção que sobreveio. As largas e pesadas portas se escancararam subitamente, com uma impetuosidade tão vigorosa e violenta, que todas as velas se apagaram como por encanto. Mesmo no escuro ainda nos foi possível notar que um estranho entrara; um homem mais ou menos da minha estatura, apertadamente envolvido numa capa. Contudo, agora, as trevas eram completas e podíamos apenas sentir que ele estava entre nós. Antes que qualquer dos presentes voltasse a si do extremo espanto em que nos lançara aquele gesto de violência, ouvimos a voz do intruso:
? Senhores ? disse ele, numa voz muito baixa, mas distinta, inesquecível, que atingiu a medula de meus ossos ?, senhores, não procuro desculpar a minha conduta, por que, agindo assim, não faço mais do que cumprir um dever. Sem dúvida, não estão informados sobre o verdadeiro caráter da pessoa que ganhou esta noite uma soma enorme no écarté, tendo como parceiro Lorde Glendinning. Vou assim propor-lhes um meio rápido e decisivo de conseguir essas importantíssimas informações. Examinem, rogo-lhes, sem pressa, o forro do punho de sua manga esquerda e os pacotinhos que serão encontrados nas algibeiras suficientemente vastas de seu roupão bordado.
Enquanto o estranho falava, o silêncio era tão profundo, que se teria ouvido um alfinete cair sobre o tapete. Terminando, ele partiu de repente, tão bruscamente como entrara. Poderia descrever a minha impressão? Será preciso dizer que senti todos os horrores dos danados, no inferno? Decerto, tive pouco tempo para reflexão. Vários braços me agarraram com violência, reacenderam-se imediatamente as luzes. Revistaram-me: no forro de minha manga, encontraram todas as figuras essenciais do écarté e, nos bolsos do meu roupão, um certo número de baralhos exatamente semelhantes aos que usávamos em nossas noitadas, com a única exceção de que os meus eram daqueles chamados, tecnicamente, arrondées: as cartas figuradas ligeiramente convexas nas extremidades mais estreitas e as sem figuras também imperceptivelmente convexas, nos lados mais largos. Graças a essa marcação, a vítima quando corta o baralho ao comprido, como é habitual, dá, inevitavelmente, uma carta figurada ao adversário, ao passo que o trapaceiro, cortando no sentido da largura, jamais dará ao outro algo que lhe possa trazer vantagem.
Uma tempestade de revolta me afetaria menos do que o silencioso desdém e a calma sarcástica com que receberam essa descoberta.
? Sr. Wilson ? disse nosso anfitrião, baixando-se para apanhar sob meus pés uma magnífica capa de pele rara ?, Sr. Wilson, isto lhe pertence.
Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eu pusera sobre a roupa que vestira de manhã uma capa que tirei, ao chegar ao local do jogo.
? Imagino ? disse olhando as dobras do manto com um sorriso amargo ? que será supérfluo procurar aqui novas provas de sua habilidade. Realmente, estamos fartos. Espero que compreenda a necessidade de deixar Oxford e, de qualquer modo, de sair imediatamente de meus aposentos.
Aviltado, humilhado até a poeira, como estava no momento, é provável que tivesse castigado essa linguagem insultante com violência imediata, se toda a minha atenção não estivesse, nesse momento, detida por um fato dos mais surpreendentes. A capa que eu trouxera era de uma pelica superior ? de uma raridade e de um preço tão extravagantes, que não me atrevo a dizer. O modelo também era de minha invenção, pois nessas questões frívolas eu era exigente e levava o dandismo às raias do absurdo. Por isso, quando Preston me entregou o que apanhara no chão, junto à porta da sala ? com um espanto quase terror ?, percebi que já tinha a minha capa sobre o braço onde a colocara sem prestar atenção, e aquela que agora me davam era uma exata reprodução em todos os detalhes da minha. A singular criatura que me denunciara de maneira tão desastrosa estava, lembro-me bem, envolta numa capa e nenhum dos presentes, exceto eu, usava capa naquela ocasião. Conservei porém uma certa presença de espírito e recebi a capa que Preston me oferecia, coloquei-a ? sem que ninguém prestasse atenção ? sobre a minha; saí da sala com um desafio ameaçador no olhar e nessa manhã mesmo, antes do alvorecer, fugi precipitadamente de Oxford, em viagem pelo continente, angustiado de horror e vergonha.
Fugi em vão. Meu destino maldito me perseguiu, triunfante, provando-me que seu misterioso poder apenas começava. Mal chegara a Paris, tive outra prova do interesse detestável que esse Wilson tomava pelos meus negócios. Os anos passaram, e não tive trégua. Miserável! Em Roma, com que importuna obsequiosidade, com que ternura, o espectro se interpôs entre mim e a minha ambição! Em Viena… em Berlim!… em Moscou! Na verdade, em que lugar não tinha eu uma razão amarga para maldizê-lo do íntimo do meu coração? Tomado de pânico, fugi enfim de sua impenetrável tirania, como de uma peste até o fim do mundo, fugi, e fugi em vão.
E sempre, sempre interrogando secretamente minha alma, perguntava a mim mesmo: “Quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?” Mas não encontrava resposta. E analisava então com um cuidado minucioso as formas, o método e os característicos de sua insolente vigilância. Mas aí, ainda, não encontrava muita coisa que pudesse servir de base a uma conjetura. Era verdadeiramente notável o fato de que das inúmeras vezes em que ele atravessara no meu caminho, recentemente, jamais o fez senão para frustrar planos ou derrotar ações que, se bem sucedidas, teriam redundado em amarga decepção. Pobre justificativa, na verdade, para uma autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para esses direitos naturais de livre-arbítrio tão obstinada e ofensivamente negados!
Fui obrigado a notar que meu algoz, havia longo tempo, mesmo exercendo escrupulosamente e com hábil destreza a mania de se vestir da mesma maneira que eu, cada vez que interferira na minha vontade, fizera tudo de maneira que eu não pudesse ver o seu rosto. Fosse lá quem fosse esse maldito Wilson, sem dúvida, semelhante mistério era o cúmulo da afetação e da tolice. Poderia ele supor um instante que, como meu conselheiro de Eton, destruidor de minha honra em Oxford, aquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles e, o que ele chamava, erroneamente, a minha avareza, no Egito ? nesse ser, meu grande inimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o William Wilson dos meus anos de colégio, o homônimo, o camarada, o rival execrado e temido do colégio Bransby? Impossível! Mas deixem-me descrever a terrível cena final do drama.
Até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio. O sentimento de profundo respeito com o qual me acostumara a considerar o caráter elevado, a sabedoria majestosa, a onipresença e onipotência aparentes de Wilson, acrescentados a uma certa sensação de terror que me inspiravam alguns outros traços de sua natureza e determinados privilégios, tinham criado em mim a idéia de minha fraqueza absoluta, de minha impotência, me haviam aconselhado uma submissão sem reservas, embora cheia de amargura e de repugnância, à sua ditadura arbitrária. Mas, nesses últimos tempos, abandonara-me inteiramente ao vinho e sua influência exasperante sobre meu temperamento hereditário tornava-me cada vez mais relutante a todo controle. Comecei pois a murmurar, a hesitar, a resistir. E seria simplesmente minha imaginação que me induzia a crer que a obstinação de meu algoz diminuiria em razão da minha própria firmeza? É possível, mas em todo caso começava a sentir a inspiração de uma esperança ardente, e acabei nutrindo, no mais secreto de meus pensamentos, a sombria, a desesperada resolução de libertar-me dessa escravidão.
Foi em Roma, durante o carnaval de 18…; encontrava-me num baile à fantasia, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Abusara da bebida, além do habitual, e a atmosfera sufocante dos salões apinhados irritava-me de maneira insuportável. A dificuldade de abrir caminho através da multidão contribuiu ainda mais para exasperar o meu humor, porque eu procurava ansiosamente (não direi com que motivo indigno) a jovem, alegre e bela esposa do velho e extravagante Di Broglio. Com uma confiança bastante imprudente, ela me revelara o segredo da fantasia com que iria ao baile e, como eu acabava de avistá-la de longe, apressei-me para alcançá-la. Nesse momento, senti uma mão pousar de leve em meu ombro ? e depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro em meu ouvido!
Tomado de cólera e frenesi, voltei-me bruscamente para aquele que ousara me perturbar e segurei-o com violência pelo colete. Wilson vestia, conforme já esperava, um traje absolutamente semelhante ao meu: capa espanhola de veludo azul, presa por um cinto carmesim do qual pendia uma espada. Uma máscara de seda negra cobria-lhe inteiramente o rosto.
? Miserável! ? exclamei com voz rouca de cólera, e cada sílaba que me escapava era como um combustível acrescentado ao fogo de minha ira. ? Miserável! Impostor! Vilão maldito! Não seguirás a minha pista… não me atormentarás até a morte! Segue-me, ou apunhalo-te aí onde estás!
E abri caminho, do salão de baile, para uma pequena antecâmara vizinha, arrastando-o irresistivelmente comigo.
Entrando, atirei-o com fúria para longe de mim. Ele cambaleou, de encontro à parede. Fechei a porta, com uma imprecação, e ordenei-lhe que desembainhasse a espada. Wilson hesitou um segundo; depois, com um leve suspiro, tirou silenciosamente a arma e se pôs em guarda.
O combate foi rápido. Eu estava exasperado, sentia desvarios de toda a espécie e, num único braço, a energia e o poder de uma multidão. Em alguns segundos, dominei-o pela força, contra o lambril, e ali, tendo-o à minha mercê, mergulhei várias vezes, golpe após golpe, a espada em seu peito, com uma ferocidade de bruto.
Nesse momento, alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma intromissão importuna e voltei-me imediatamente para meu adversário que expirava. Porém. que ser humano poderá traduzir suficientemente o espanto, o horror que se apoderaram de mim, ante o espetáculo que se apresentou aos meus olhos? O curto instante, durante o qual me desviara, fora suficiente para produzir, aparentemente, uma mudança material nas disposições do outro extremo da sala. Um vasto espelho ? em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio ? erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante.
Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário, Wilson, que diante de mim se contorcia em agonia. Sua máscara e capa jaziam sobre o soalho, no ponto onde ele as lançara. Não havia um fio de sua roupa ? nem uma linha em toda a sua figura tão característica e tão singular ? que não fossem meus: era o absoluto na identidade!
Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me disse:
? Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo.
Edgar Allan Poe
Extraído do site Nox in Vitro